Assisti ao filme nessa virada de ano. Confesso que senti alguns desconfortos durante as suas mais de duas horas, alguma coisa na sua narrativa. Nos dias posteriores, tentei articular racionalmente o incômodo, o que me incentivou a escrever essas linhas. Para bem contextualizar o que me deixou ressabiado, não posso deixar de descrever como “enxerguei” o filme. Para isto, farei nos próximos parágrafos um resumo dele, da forma como ficou “gravado” na minha cabeça. Quem ainda não o assistiu, sugiro fortemente que não leia esse texto, contém muitos spoilers.
Uma cientista e um cientista descobrem que um cometa atingirá a Terra em seis meses. Eles entram em contato com as autoridades competentes (outro cientista que dirige uma agência que lida com ameaças espaciais e outra cientista, que é a chefe da NASA) e vão ao encontro da presidente. A presidente diz que os cientistas estão sempre proferindo o juízo final, se as pessoas entrarem em pânico, ela perderá a eleição de meio de mandato, e que conseguirá lidar com o assunto mais a frente. Em desespero, a cientista e o cientista conseguem uma participação em um grande programa de TV, mas toda a repercussão subsequente é sobre como o cientista é sexy e como a cientista soa estridente. Ainda desesperados, eles vão a um jornal que é o proxy no filme do New York Times e publicam um artigo sobre o cometa. Em resposta, a presidente faz a chefe da NASA anunciar que não há nada com que se preocupar, e o proxy do Times descarta a história e acusa os cientistas de fazê-los parecer mal.
Então a presidente é pega em um escândalo e de repente, distrair o público parece uma boa ideia. Ela passa a endossar a existência do cometa, despede a chefe da NASA e anuncia uma missão extravagante de deflexão do cometa repleta de propaganda eleitoral. Todos os cientistas a apoiam e calculam “81% de chance de sucesso”. A missão é lançada com grande alarde. Nessa parte, somos apresentados ao CEO de tecnologia, o “terceiro homem mais rico do planeta” e o maior doador da presidente. O CEO de tecnologia diz que o cometa está cheio de elementos raros de que ele precisa para fazer telefones celulares e exige que a presidente cancele a missão de deflexão do cometa. Ele quer usar sua própria tecnologia não comprovada para o desmontar cirurgicamente e recuperar os tais elementos raros. Alguns “cientistas vencedores do Prêmio Nobel” que trabalham para ele concordam que tudo dará certo. Em vez de ofender um doador de campanha, a presidente cancela a missão.
Os cientistas discutem entre si e decidem que o plano do CEO de tecnologia não funcionará. O cientista decide trabalhar dentro do sistema e tentar mudar as coisas por lá, mas esse processo gradualmente o corrompe. Para manter seu emprego e acesso, ele estrela comerciais de TV nos quais garante a todos que o plano do CEO de tecnologia é ótimo e que eles devem se sentir seguros. A cientista, por sua vez, entra em uma cruzada contra a recuperação do cometa. Suas palavras causam tumultos e o governo responde destruindo sua credibilidade. Ela abandona o doutorado e acaba em uma cidade pequena, empacotando alimentos. O cometa torna-se visível no céu noturno. A presidente lança um novo slogan, “Não olhe para cima!”, que apazigua seus partidários e reprime a resistência. Os teóricos da conspiração escrevem postagens em blogs dizendo que não há cometa, e é tudo uma conspiração marxista. As celebridades de Hollywood dizem coisas estapafúrdias sobre como “precisamos considerar os dois lados” e “não deixar que o cometa nos separe”.
O CEO de tecnologia tenta seu plano de desmontagem do cometa, mas ele falha, deixando a Terra oficialmente condenada. O cientista tem seu arco de redenção, admite que tentar trabalhar dentro do sistema foi errado e se reconcilia com várias pessoas com quem precisa se reconciliar. Todos têm um momento tocante de união antes que o cometa atinja o solo e mate todos – exceto as elites, que escaparam em uma nave projetada pelo CEO da Tecnologia. Depois de milhares de anos, eles alcançam outro planeta habitável, mas aparentemente são comidos por dinossauros locais imediatamente após pousarem.
O filme supostamente defende a premissa de que é preciso confiar na Ciência, mas infelizmente, na minha opinião, não para de contradizer essa própria premissa. Vamos lá: Ele retrata um mundo monstruoso onde o establishment está conspirando para esconder a verdade de nós de todas as maneiras possíveis. Descreve as elites como simultaneamente incompetentes e super competentes. Há uma ótima cena em que a cientista está conversando com alguns desordeiros. Os desordeiros a bombardeiam com teorias da conspiração – “as elites construíram bunkers!” “Eles estão deitados, totalmente seguros, rindo da ideia do cometa”, etc, etc. “Não”, responde a cientista, “eles não são tão competentes”. É uma ótima frase, e eu a levaria completamente a sério se mais tarde, porém, não ficássemos sabendo que o CEO da tecnologia literalmente construiu uma nave interestelar para não sei quantas pessoas em menos de seis meses, para que ele e outros membros das elites pudessem escapar.
Mas a pior parte é que, basicamente, todas as instituições científicas acabam mentindo. A chefe da NASA anuncia oficialmente que não há nada com que se preocupar. O CEO de tecnologia desfila um monte de ganhadores do Prêmio Nobel que endossam seu plano ridículo e dizem que tudo vai dar certo. O cientista, durante sua fase de trabalho dentro do sistema, faz comerciais tranquilizando as pessoas de que o cometa não as machucará. A mídia é cúmplice de tudo isso, impedindo sistematicamente a população de ouvir a verdade. A única pessoa que diz exatamente isso (a verdade) é a cientista que sai do doutorado e vai trabalhar empacotando alimentos. Leve essa narrativa a sério, e a moral óbvia da história é: todas as teorias da conspiração são verdadeiras. Se alguém te disser na fila do supermercado que todos os cientistas do mundo estão mentindo, acredite nessa pessoa 1.000 por cento.
Há um debate sobre se “Não olhe para cima!” estaria ajudando argumentos progressistas a respeito das mudanças climáticas e na pandemia da COVID. Não tenho certeza se ele pode beneficiar qualquer um dos dois temas. Aplique-o à mudança climática e acabamos em alguns lugares bem estranhos, tenho certeza de que é possível encontrar um não-especialista me dizendo que todos os climatologistas estão errados e mentindo; devo acreditar? Aplique-o à COVID e é ainda pior. A Anvisa me diz todos os dias que a vacina da Pfizer é segura para crianças – mas o cientista e a NASA disseram no filme, todos os dias, que o plano de recuperação do cometa feito pelo CEO da tecnologia era seguro. Posso confiar nas autoridades científicas quando parece haver um motivo de lucro envolvido? “Ouvi dizer que a ivermectina parece promissora” soa como uma conclusão lógica dessa narrativa.
A única coisa que “Não olhe para cima!” consegue fazer de forma consistente, na minha opinião, é insistir com a tese de que existe “a resposta certa”, principalmente se o debate é sobre algum tema ligado ao negacionismo, tipo “a Terra não é redonda” ou “não há aquecimento global”. Quanto mais você pensa sobre esse tipo de debate, mais absorve lições como “tudo tem uma resposta óbvia e certa”, “qualquer um que discorde de mim é um idiota”, “o tempo adequado para debater algo antes de descartá-lo como óbvio e seus oponentes como agindo de má-fé é exatamente zero segundos”. É preciso entender que esse tipo de debate não é científico. Creio que não se deveria perder tempo discutindo a respeito de terraplanismo ou se existe aquecimento global. Em vez disso, é melhor refletir e debater temas como quando a Inteligência Artificial Geral vai acontecer, ou como a inflação vai se estabilizar, ou qualquer uma das milhares de outras questões em que há pessoas inteligentes debatendo os vários ângulos da questão e não apenas querendo negar temas já pacificados. Dessa forma, é possível desenvolver o pensamento crítico, que é essencial para resolver questões difíceis, como o aquecimento global ou a pandemia da COVID.
Concluindo, se houver um cometa vindo em direção à Terra, deveríamos defender a realização de algum tipo de ação para desviá-lo, mesmo que o CEO de uma empresa de tecnologia diga para não se preocupar. Eu acredito que um cometa metafórico está vindo em direção à Terra agora (e nos atingirá aqui no Brasil possivelmente em outubro), e que o CEO de uma empresa de tecnologia está literalmente me dizendo para não me preocupar, e ele está errado. É possível que metade das pessoas concordem comigo, que a outra metade diga que estou errado, e todas as narrativas e heurísticas do mundo não nos levarão um passo mais perto do consenso, muito menos da verdade. Não creio que essa situação começará a se resolver sem o estímulo ao desenvolvimento do pensamento crítico. Admito, porém, que o filme é excelente em representar o sentimento gerado pela situação Ciência vs. negacionismo. Mas, como propaganda pró-Ciência, penso que deixou muito a desejar.