Em “Solar” (Companhia das Letras, 336 páginas), do escritor britânico Ian McEwan, o aquecimento global não é algo que preocupa de imediato o cientista Michael Beard, embora os sinais sejam claros e parte da sua equipe tente alertá-lo. A preocupação dele, que venceu o prêmio Nobel graças a uma pesquisa baseada na teoria de Albert Einstein, é manter suas amantes o mais longe possível de sua quinta esposa, Patrice. Gordo, careca e dono de uma prepotência cômica que o iguala a qualquer cidadão comum, Michael é um anti-herói.
A ótima narrativa em terceira pessoa é habilidosa em olhar para a canastrice de Michael sem um julgamento moral direto, sem que suas contradições tenham defesa fácil. McEwan também consegue envolver os temas e termos científicos de maneira natural. As passagens onde o personagem discute sua pesquisa ou mesmo dialoga com outra áreas da ciência, não são incompreensíveis, apesar de serem muito técnicas.
Essa é a graça, inclusive. Ian McEwan escreve um romance sobre a comunidade científica, mas o destaque está na humanidade nua e crua de personagens egocêntricos e pouco ortodoxos. Caso fosse um filme, “Solar” certamente seria uma adaptação produzida por Aaron Sorkin pois o livro tem em sua trama a velocidade e a articulação que os tipos criados pelo roterista americano tornaram célebres.
Dividido em três partes, “Solar” tem uma uma primeira parte hilária. Em dado momento, depois de descobrir que sua mulher também tem amantes, Michael parte para uma viagem à Antártica que é divertidíssima.
Já nas duas partes seguintes o ritmo cai. McEwan dá um considerável foco no casamento fracassado de seu protagonista e na união dele com outra esposa. A trama paralela é importante para descamar a personalidade de Beard, contudo também separa o leitor de uma dinâmica que já tinha sido muito bem estabelecida na primeira parte do livro.
Não é um problema. Ian McEwan é um grande escritor e com um capacidade narrativa capaz de trançar diversos interesses sem que o texto perca poesia e eletricidade.
Em um trecho onde Michael faz sexo com a esposa sem estar totalmente conectado a situação, McEwan não diz que a mente do personagem vagou. Ele escreve isso:
“Naqueles segundos derradeiros, entrou num teatro vazio que lhe era bem familiar, sentou-se nas primeiras filas e convocou para um teste algumas mulheres que conhecia, trazendo-as ao palco na velocidade impossível do pensamento. Elas surgiam em atitudes experimentais, em cenas diferentes que magicamente o envolviam” (pág 221).
A ciência volta ao centro na última parte, onde Michael Beard lança um novo projeto de produção de energia limpa capaz de colaborar na preservação do meio ambiente e desacelerar o aquecimento global.
É aqui que McEwan explora muito bem os laços humanos e científicos como uma coisa só. Melhor, ele eleva a fervura desse universo chegando a um resultado menos cômico ou pop do filme “Não olhe para cima”, sensação da Netflix, embora semelhante: as pessoas que tentam salvar o mundo são tão corrosivas, mesquinhas, interesseiras e egoístas quanto as pessoas que o destroem. O mundo não precisa ser salvo para a humanidade, e sim salvo dela.