“Eu falo brasileiro”, repete um haitiano que fazia um tipo de protesto em um vídeo que circulou na internet em 2021.
Quando a peça “Língua Brasileira” começa não é necessariamente uma atriz ou um personagem que está diante do público. A proposta do espetáculo, em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo, é decodificar os códigos da comunicação que formam nossa própria língua. É achar o som e a forma universal que tem o “falar brasileiro”.
Sobretudo os sons, que vem da natureza e se confundiram na transformação da língua durante o processo de civilização, tem uma importância imensa nessa criação de um universo gramático.
As línguas indígenas, gregas, latim, árabe, celta, português arcaico, estão no DNA do português brasileiro, mas cada dialeto também guarda em si uma formação histórica que é contextual.
O trabalho espetacular da banda e de todo o elenco – que demonstra uma capacidade de memorização impressionante de tantos termos e sotaques originários – é fundamental para que o público participe do nascedouro vocal. A falta de entendimento dos índios diante dos navegadores, por exemplo, começa com graça e curiosidade, e depois se transforma num flagrante muito pessimista porque a história que nós ouvimos não dá conta de todos os interesses envolvidos no episódio da descoberta do Brasil.
Magistralmente bem dirigido por Felipe Hirsch, “Língua Brasileira” integra o projeto Puzzle. Ele nasceu para o público na Feira do Livro de Frankfurt, em 2013, ano em que o Brasil foi homenageado, e funciona como um vitral histórico para compreender a fundação latino-americana.
Se nas demais peças do projeto o grupo Ultralíricos abordou temas polêmicos como o conservadorismo brasileiro, “Língua Brasileira” não esconde seus posicionamentos combativos na defesa da cultura, mas usa uma carga poética poderosa e lírica para estabelecer a conexão entre passado, presente e futuro.
É belíssima a cena onde é contada a história do Obatalá, o orixá criador dos humanos. Vestidos apenas de preto e com poucos adereços, os atores dançam e cantam cobertos por projeções que ora são imagens da natureza, ora são uma constelação de verbos, adjetivos, sílabas e vogais.
A alfabetização cultural proposta pelo espetáculo também evoca o ridículo, o humor em uma genial cena onde dois jesuítas ensinam aos índios falarem o idioma deles, terminando em um coro com a plateia repetindo a oração do pai nosso.
As canções criadas por Tom Zé se encaixam no quebra-cabeça como um tipo estranho de dicionário: não mostram as definições exatas, apenas sugerem um tipo de contemplação coletiva em busca de uma identidade nacional.
Tom Zé, que fez um disco inteiro onde se faz tudo o que dá pra fazer usando a garganta, exceto cantar, chamado “Danç-êh-sá”, colaborou ativamente para que o espetáculo expressasse a língua em todas as suas formas: gestos, vocábulos, sons, grunhidos. O músico compôs lindas letras para o espetáculo, que teve direção musical da artista Maria Beraldo.
A mistura entre teatro e Tom Zé, música e história, inclusive nasceu da própria música “Língua Brasileira”, que está no repertório do cantor baiano no disco “Imprensa Cantada”. Foi de lá que o diretor justamente com o grupo extraíram a borracha pra fazer a peça.
De uma pichação encontrada nos muros de Pompeia, até o poeta medieval Martin Codax e os mitos indígenas , poemas em árabe, passando pela cultura dos morros, o negro, “o português entre as euro-línguas”, o espetáculo adia um final apoteótico para terminar em um epílogo cheio de doçura onde a mensagem é clara: onde tem língua, tem história. E a do Brasil não há de se calar nunca.