Queda livre em direção ao futuro

“Essas coisas não aconteceram nunca, mas existiram sempre” (Salústio em Sugli Dèi e il Mondo)
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Em todas as eras e latitudes, os mitos nos ajudaram a viver com um sentido pleno, enxergando o mundo como cheio de significado. Vivemos num tempo no qual os deuses do passado foram esquecidos, mas não desapareceram.

Na obra Sugli Dèi e il Mondo, o historiador latino Gaio Salústio1 ilustra a eternidade dos mitos: “Essas coisas não aconteceram nunca, mas existiram sempre”. Trata-se de uma forma precisa de colocar a questão, uma vez que as coisas retratadas nos mitos nunca aconteceram na realidade “lá fora”, muito embora desde sempre tenham existido como realidades internas.

Desse modo, mesmo em um mundo dessacralizado, em que grande parte das pessoas se sente “em queda livre em direção ao futuro”2, os mitos ainda ressoam em nós e nos ajudam a compreender a aventura de estarmos vivos. Isso, porque, no fundo, provavelmente intuímos: somos, todos, deuses e heróis da nossa própria história. 

Porém, enquanto na mitologia tradicional — aqui compreendidas tradições tão distantes entre si como as do Protoneolítico, a persa e a judaico-cristã —, uma pessoa participa de um rito e espera dali ter uma revelação, na mitologia criativa, um indivíduo tem uma revelação e então vai para o mundo tentando transmiti-la a outras pessoas. Pense em Ulisses, de James Joyce, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Star Wars, de George Lucas, ou Harry Potter, de J. K. Rowling, e você estará diante de obras cujo alcance e profundidade psicológica as tornaram verdadeiros guias espirituais e forças estruturantes da nossa sociedade. A mitologia criativa é justamente aquilo que pode atualizar as narrativas míticas atemporais para a linguagem do nosso tempo.

Em uma época em que a criatividade e a fantasia deixaram de ser vistas como coisas frívolas e passaram a ser valorizadas como algo crucial para o desenvolvimento humano, o contato com a mitologia e com aquilo que se manifesta criativamente favorece um maior desenvolvimento dos potenciais individuais, ao mesmo tempo em que promove uma sociedade capaz de ver os velhos problemas sob novos ângulos. O conhecimento da mitologia gera um impacto global, que afeta não apenas o intelecto, mas atinge o ser humano como um todo, em suas emoções e sonhos, possibilitando mudanças em vários campos da vida.

Este texto é uma adaptação do prefácio do livro “Mitologia Criativa”, escrito por mim e pelo psicólogo Heráclito Pinheiro. A obra será publicada pela Fundação Demócrito Rocha no primeiro semestre de 2022.


Notas de rodapé

(1)  Gaio Salustio Crispo (Amiterno 86 a.C. – Roma 34 a.C.) foi um historiador latino. Sob a influência de Publio Nigidio Figulo, iniciador do neopitagorismo em Roma, foi um dos maiores expoentes no período imediatamente anterior à Tradição Cristã. Seus escritos são citados por Santo Agostinho e Apuleio.

 (2) Frase do mitólogo Joseph Campbell. 

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