Quando eu morava no interior de Goiás, onde passei um pedaço da vida, estudava em um colégio que assinava um jornal regional de nome “O Popular”. Todas às terças-feiras, eu roubava da recepção do colégio o exemplar do dia, me sentava em um canto distante do pátio, e lia a coluna de Arnaldo Jabor. A descoberta dos seus textos aconteceu por acaso. Os títulos eram chamativos, provocativos.
Quando Arnaldo Jabor escrevia sobre política, eu, então com pouco mais de 15 anos, não terminava a coluna antes do sinal bater me mandando voltar pra sala de aula. Mesmo me interessando pelo assunto bem depois, o jeito zombeteiro, com referências labirínticas de filosofia, história, sociologia e cultura, me puxavam.
A política estava em segundo plano. No close, o que eu via era um homem que escrevia com vigor sobre absolutamente tudo.
Já os textos sobre cinema eram mágicos. Era exatamente como entrar em uma sala e ver pelos olhos dele alguns filmes que naquela época sem streaming, sem aparelho celular e sem wi-fi, seriam impossíveis assistir.
Foi em uma coluna do Jabor, por exemplo, que conheci Federico Fellini, o grande cineasta italiano que misturava arte barroca, fantasia e memória. Não me lembro exatamente qual filme ele abordou no texto – será que foi 8 e 1/2? O que ficou daquela leitura foi justamente a necessidade de ver algum filme de Fellini, não importava qual.
Em alguma medida, os textos de Jabor serviam como um dicionário para que você mesmo encontrasse a definição do que poderia ver, seja na tela ou fora dela. Seu olhar irônico, sarcástico e crítico pulou das salas de cinema para os jornais e para a televisão, onde ele debateu os problemas e particularidades do Brasil. Como um crítico e espectador de sua época, Jabor entendeu que não era seu papel apontar o caminho, mas questionar se o rumo estava realmente certo.
Voltando aos filmes, o primeiro trabalho de Jabor que assisti é justamente seu melhor filme: a obra-prima, “Tudo Bem”, de 1978, protagonizado por Paulo Gracindo e Fernanda Montenegro.
Na obra, Jabor reduz os feudos familiares que tanto ditam as leis do Brasil a um apartamento no Rio de Janeiro. É ali, enquanto a família aguarda uma reforma da sala, que se iniciam os conflitos e críticas a respeito de uma elite que infecciona o país, que não se importa com nada além de si mesma, que não tem nenhuma qualidade que justifique o pedestal ocupado.
Em uma cena antológica, Zezé Motta – a empregada – vai se prostituir e passa pela cozinha completamente nua, cantando e dançando “Como os nossos pais”, de Belchior, mas que teve uma poderosíssima interpretação de Elis Regina.
O filme é lotado de referências ao Brasil amarrado à ditadura militar, ao proselitismo cultural e religioso e ao descompromisso da sociedade com a racionalidade. A abertura, onde Paulo Gracindo conversa com fantasmas enquanto redige uma carta ao jornal, também é genial.
Outra cena de “Tudo bem” que ficou marcada na minha memória para sempre é a de uma espécie de cortejo que acontece pelos fundos do apartamento. As pessoas acham que ali há uma santa e fazem uma procissão pelo lugar enquanto a patroa se desespera.
Depois assisti outros filmes de Jabor, mas dois deles foram marcantes: “Toda Nudez Será Castigada”, uma adaptação de 1973 da peça de Nelson Rodrigues que tem tudo do dramaturgo e tem tudo de Arnaldo Jabor, e o poderoso “Eu sei que vou te amar”, de 1986.
Doze anos antes, o diretor sueco, Ingmar Bergman, inspiração para qualquer artista, filmou “Cenas de um Casamento”. O filme é provavelmente um dos romances mais ácidos, tristes e belos, já feitos. Não dá pra comparar, mas “Eu sei que vou te amar”, à sua maneira, mostra as cenas de um casamento brasileiro. Jabor não filma uma DR, ele descama uma luta de classes, de gênero, de espaço, de história, e o faz de modo a revelar que o maior dos sentimentos é, em grande parte, uma banalidade. A briga de casal protagonizada por Fernanda Torres (vencedora do prêmio de melhor atriz no festival de Cannes) e Thales Pan Chacon, não é o sintoma nem causa de algo que está ruim. O embate tem seu próprio tempo e, por isso, serve como um vulcão para despertar os males que nos atazanam fora do quarto, nossos males universais.
Expoente do Cinema Novo, o movimento brasileiro crítico à desigualdade social que se tornou proeminente no Brasil durante os anos 1960 e 1970, Jabor trocou as misérias do sertão pela vastidão interior dos apartamentos e das famílias moralistas. Preferiu, talvez, um caminho diferente para chegar ao núcleo comum do movimento. E o fez com grandeza.
Hoje, ele despede. Como Jabor foi um cronista longevo, em vez de roubar um exemplar de jornal, pego um trecho de Rubem Alves, um escritor que certamente Jabor admirava, que encerra o texto “Amigos na Praia”: “E tão sossegados e tão inocentes, que, se Deus nos visse por acaso lá de cima, murmuraria apenas – ‘lá estão aqueles três’ – e pensaria em outra coisa.”
Nem sossegado, nem inocente, o cinema brasileiro também murmura: lá se vai aquele ali.