Quando “Mães Paralelas” (Netflix, 2021) começa, Janis já é uma profissional consolidada, com carreira e uma mulher bastante resolvida consigo mesma. É uma figura forte, máscula e que a atriz, Penélope Cruz, empresta carisma e sensualidade em medidas exatas. Por descuido – ou destino – ela engravida do amante, Arturo (Israel Elejalde), um arqueólogo forense que vai ajudar Janis a escavar os restos mortais de seus familiares mortos durante o Franquismo.
Esse regime político ditatorial que vigorou na Espanha entre os anos de 1939 e 1976, fez milhares de vítimas e instituiu o fascismo como um pêndulo mortal no destino dos espanhóis.
O diretor e roterista, Pedro Almodóvar, enxerga na simbiose dos temas – maternidade de Janis e também sua busca por recuperar parte da sua história – uma oportunidade maior do que revisitar o passado. O que ele vê é a chance de atrair para o passado as similaridades modernas.
No hospital, Janis está no mesmo quarto de Ana (Milena Smit), uma adolescente com pouca ou nenhuma consciência social, política e filosófica. Ana não vê a maternidade com a mesma alegria de Janis.
Almodóvar joga com as cores. Janis está vibrante, margeada por paredes amarelas. Ana, depressiva, usa roupas roxas, azuis, cores frias. E o caráter plástico da fotografia reforça a paridade que está em praticamente todos os elementos simbólicos do filme. Passado o parto, as duas mulheres não se veem novamente.
O diretor usa uma tragédia para unir suas personagens novamente e discutir o peso que a história de uma nação tem na formação de um indivíduo.
Controlando o melodrama com muita sofisticação, com a lindíssima fotografia, música de Alberto Iglesias e edição impulsionando um roteiro sólido, contido. Almodóvar faz uma espécie de exame de DNA cinematográfico.
O tom político do filme, já que Janis busca escavar os restos mortais dos parentes mortos, nunca é gratuito, espalhafatoso e, inclusive, pode passar despercebido a um espectador sem o devido contexto do que significou o franquismo para a Espanha.
A habilidade de Almodóvar em escrever essa história mantém o público focado na descoberta do passado de Janis através do seu relacionamento com Ana. O que parece um trama doméstica, na verdade, é uma discussão ampla e poderosa sobre verdade, passado e presente, sobre caráter histórico e a importância de abraçar a sua condição de indivíduo como alguém que participa de uma comunidade.
Ou seja, essas duas mulheres simbolizam, sim, as mães e viúvas deixadas pelas perseguições dos regimes. Mas, também incorporam as dificuldades comuns às mulheres, independente da época.
Faz mais. A maternidade é vista sob três ângulos que se complementam, já que a mãe de Ana também está na história. O interesse de Almodóvar é de entender as relações humanas e investigar os pontos nevrálgicos que tornam todos nós demasiadamente humanos. O horror é parte da humanidade, mas não é toda ela. Não esquecer das atrocidades que aconteceram – como o franquismo ou qualquer outro sistema ditatorial – tem peso. Precisa estar presente. Precisa ser escavado. E isso cabe tanto no microcosmo social de Janis, dessa personagem que rompe com tantas amarras pra ter sua própria vida, quanto de outras mães.
Ao final, em uma imagem muito agressiva e também bastante delicada, o cineasta usa as valas onde os parentes de Janis foram enterrados como uma espécie de ventre, de jaula: presos à mentira, os sobreviventes desses sistemas horríveis, e também seus descendentes, são natimortos. Na visão de Pedro Almodóvar, em qualquer época, só a verdade permite a liberdade. E também são elas duas mães que dão a luz aos direitos universais que garantem a existência.