No dia 24 de fevereiro de 1972, o diretor Francis Ford Coppola fez uma oferta que o público do cinema não poderia recusar. Era a estreia de ‘O Poderoso Chefão’ (The Godfather, 1972).
O drama desmembrava o núcleo de uma família italiana de Nova York, chefiada por Don Corleone (Marlon Brando). Sempre fazendo favores à comunidade para depois cobrá-los na hora certa, Don Vitto mantinha valores clássicos: a honra, os costumes, a tradição religiosa e, acima de tudo, os interesses da própria família.
A época do filme é 1945. A Segunda Guerra Mundial terminou, os filhos combatentes retornavam pra casa e encontravam suas cidades completamente mudadas. Não apenas com ruas mais sujas, a degradação herdada da guerra e um certo desencanto por ver o estilo urbano usurpar a inocência das pessoas que antes viviam em vilas pequenas, com a proposta de uma sociedade fundamentada pelo novo capitalismo.
O crescimento econômico no pós-Segunda Guerra Mundial se solidificou como um poder universal. E Don Vitto se acha às voltas dessa ameaça que o boom financeiro trazia, como o consumo de drogas, aos seus negócios de contravenção.
É justamente por se recusar a dar apoio policial e político na entrada da cocaína na cidade aos demais membros da organização a que ele pertencia, que a família Corleone vai de glória a quase ruína.
Francis Ford Coppola filma ‘O Poderoso Chefão’ com o máximo de realismo. Suas ambientações são estragadas, urbanas; o tom da narrativa é pesado e dissolve os temas caros à época do filme sem dar trégua ao espectador. Estão lá as hierarquias de poder, a polícia e política como andaimes da corrupção, a degeneração moral das instituições estatais e um certo complô familiar para sempre garantir o desenvolvimento do topo da pirâmide.
‘O Poderoso Chefão’ é de 1972. O cinema inaugurava o olhar crítico a respeito do american dream. O filme arrebentou as portas para diretores da Nova Hollywood – o movimento cinematográfico que rompiam com às narrativas travadas da era clássica – como Martin Scorsese, Steven Spielberg e Brian De Palma. A turma de autores desenhou a visão do artista em detrimento do controle dos grandes estúdios; discutiam temas contemporâneos e expunham as feridas sociais. Para se ter uma ideia do quanto “O Poderoso Chefão” era inovador, antes dele somente um filme vencedor do Oscar ousou disparar contra a cultura do sonho americano: “Perdidos na Noite”, de 1970 e dirigido por John Schlesinger, um potente drama sobre um cowboy inocente que larga o interior do Texas em direção à Nova York, e por lá vive a dura realidade urbana.
A produção de Coppola não foi fácil. A Paramount, o estúdio dono do filme, bateu o pé por uma história menos pecaminosa. E Coppola foi pra cima pra manter sua liberdade criativa. Em vez de Laurence Oliver no papel principal e Jack Nicholson como Michael Corleone, o diretor só enxergava o problemático Marlon Brando e o novato Al Pacino.
Se os problemas de ‘O Poderoso Chefão’ ultrapassaram a escalação do elenco, o diretor não deixou que eles impedissem o resultado final de ser a criação de uma saga perfeita.
Don Vitto é o padrinho. É um patriarca, mas seu substituto direto precisava ter o mesmo apetite, o mesmo instinto e ambição que o tirou da sua terra natal até a era moderna americana sem pestanejar. Eles são italianos que acreditam na América.
Na maravilhosa sequência que abre o filme, o casamento da filha de Don Corleone, Michael Corleone (Al Pacino) surge fardado. Ao lado da namorada tipicamente americana – por si só, um ato de negação ao tradicionalismo – Michael conta a ela como o pai resolvia os problemas: “Fazendo uma oferta que ninguém poderia recusar: uma arma na cabeça”.
Toda a sequência é uma aula de apresentação de personagens. O lugar messiânico que Don Corleone ocupa, recebendo membros da comunidade. Sonny (James Caan) quebra a câmera fotográfica de um agente do FBI que espionava a festa, cospe quando um desses agentes apresenta o distintivo, e vai para o banheiro da casa fazer sexo com a amante. O filho adotivo, Tom Hagen (Robert Duvall), fala pouco, sempre com a cabeça baixa, mas mantendo os olhos firmes para pedir acesso à família como se fosse um membro nativo. O primogênito, Fredo Corleone (feito por John Cazales, um ator que participou de apenas cinco filmes antes de morrer de câncer, e todos obras-primas do cinema americano) tem o jeito de um adolescente irresponsável.
Coppola faz mágica. Durante 40 minutos de festa de casamento, ele mostra uma família que, sim, tem negócios escuros. Mas, mantém o métodos dela em fogo baixo. Na antológica cena seguinte, quando o produtor de cinema que deveria cumprir um pedido de Don Vitto se recusa a fazê-lo, uma cabeça de cavalo é deixada em sua cama. Percebe o poder da imagem? Minutos antes, esse produtor se gabou da excentricidade de ser um criador de cavalos. Rejeitou sem cerimônia o pedido de Tom, o mandatária de Don Corleone. Por que alguém poderoso como ele deveria acatar a mensagem de um carcamano? Em vez de matar, a família Corleone trabalha enxertando terror. A cena começa contextualizando a enorme mansão e se chega lentamente ao quarto do produtor, Jack Woltz (John Marley). Vemos um Oscar na cabeceira dele – revelando alguém talentoso, influente, mas egocêntrico – vemos lençóis de cetim e, com um zoom-in super tenso, Jack Woltz tira o lençol, revelando a cabeça decapitada do animal. Copolla alarga o suspense até ferver o completo horror; mostra que a influência de Don Vitto não depende da morte de um homem para se fazer imponente. É com essa maravilha de decantação de cena, frame a frame, que nós entendemos quem é o verdadeiro chefão.
Contudo, ‘O Poderoso Chefão’ é mesmo sobre a transformação de Michael. Herói de guerra, frio e inteligente, nem ele, nem o pai, imaginavam sua participação na máfia. O chamado vem. E com ele vem também o peso de um amadurecimento tortuoso, pecaminoso e trágico.
Mario Puzzo, autor do livro de mesmo nome, adapta sua história ao lado de Coppola como uma tragédia grega. A saga da família emula o declínio moral de um império. Mais do que um filme de máfia, ‘O Poderoso Chefão’ é o estudo de uma Era.
Os dois – Puzzo e Coppola – dispensaram esteriótipos (ninguém fala cazzo, a palavra máfia jamais é dita a projeção) para escreverem diálogos imortais (não é nada pessoal, são apenas negócios; deixe a arma, pegue o cannolil) e sequências geniais. A cabeça do cavalo na cama do produtor de Hollywood (uma ironia do diretor aos produtores-executivos do seu próprio filme?); o tiroteio contra Don Vitto; a violentíssima morte de Sonny; o retorno de Michael e, ainda hoje, um dos finais mais potentes do cinema: o batismo do sobrinho de Michael.
É ali que a arco se fecha. Coppola arma a sequência para simbolicamente nós vermos o batismo de Michael ao mundo do crime. Um herói de guerra transformado em pontífice da máfia. “Não há diferença entre as guerras do crime e da política”, concluiria ele ao ser confrontado pela esposa, Kay (Diane Keaton).
A fotografia mágica de Gordon Willis, que brinca com as sombras e a luz para revelar e ressaltar o interior dos personagens, juntamente com a trilha de Nino Rota, tornam o desfecho altamente metafórico, assustador, realista e violento. A cena permanece influente. Foi copiadíssima devido ao seu poder simbólico e técnico, já que a montagem paralela e a direção monumental de Coppola, elevaram-na à catarse.
Eu revi ‘O Poderoso Chefão’ no dia 24 de fevereiro de 2022. Impossível dizer o que se passou na mente das pessoas que deixaram a sessão de cinema 50 anos antes de mim. Provavelmente, nós compartilhamos o mesmo impacto: o Poder Econômico, a Família e a Igreja são a trindade fundadora de qualquer civilização.
A atemporalidade do filme com seu retrato realista da decadência social diante da emersão de novos agentes de poder e novas formas de controle político, moral e econômico, mostra que esse sistema vai nos mover para sempre. Ou ser o próprio fim. Não sabemos. Mas a razão dele existir é simples, e não é nada pessoal: são apenas negócios.
O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972)
Onde assistir: em cartaz nos cinemas, e no TelecinePlay
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Texto impecável! Impossivel falar de uma história que já existe a 50 anos em poucos palavras. Deixo a indicação do podcast da Marina Person, chamado “Nosso Podcast sobre Cinema”, onde o primeiro episódio é exatamente sobre o “Poderoso Chefão”. É interessante escutar os perrengues que aconteceram pra obra existir hoje, acho que vale a pena escutar!
Abraços (: