Livros pra descobrir: ‘O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro’, Sérgio Sant’Anna

A reunião de contos do escritor carioca é uma espécie de álbum mágico de histórias e sensações.

Um professor casado e sua aluna, provavelmente muito mais jovem do que ele, se encontram às escondidas dentro de um carro, nalgum lugar exilado de uma cidade desconhecida. A sinopse de ‘Dueto’, o belíssimo segundo conto do livro ‘O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro’ (Companhia das Letras, 217 páginas), do carioca Sérgio Sant’Anna, não se atém a um breve encontro casual. Ali, Sérgio vai na carne do próprio texto; usa os verbos e os adjetivos como órgãos vitais para preencher as vértebras da carcaça dos amores impossíveis. Por amor impossível, contudo, o escritor não vê o lado moralista. Não é o casamento do homem e a jovialidade da mulher que os impedirá de repetir a traição. É a própria dança dos movimentos sexuais, do ato em si. É a exploração máxima um do outro que serve de limite ao mesmo tempo em que serve de impulso.  

A dualidade faz parte da obra de Sérgio Sant’Anna, um escritor mais interessado na forma da história; nas combinações gramaticais a fim de produzir um texto silencioso, quase indivisível; o texto que é o próprio silêncio, esse lugar difícil de chegar e mais ainda de viver. 

A combustão no encontro de dois amantes parece ser o esconderijo perfeito na descoberta do escritor sobre o que é o grande silêncio.

Foto: © BEL PEDROSA. O escritor Sérgio Sant’Anna, em seu apartamento, em Laranjeiras.
Rio de Janeiro. 21/08/2012

Para um escritor, talvez, a completa ausência do som seja ‘Uma Página Em Branco’, título do conto que abre o livro. “Uma página em branco a oferecer todas as possibilidades, o papel aceita tudo. A angústia por haver todas essas possibilidades, não se toca ainda coisa alguma” (pág. 07). 

Como deixaria mais exposto somente no conto e que dá título ao próprio livro, Sant’Anna se interessa por um tipo avesso de metalinguagem. Ele é personagem e leitor ao mesmo tempo, à medida em que descarrilha sílabas e sons atrás daquilo que é maior do que a trama: o ato de escrever. 

É também no texto ‘O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro’, o penúltimo do livro, que o escritor inverte a lógica do formato e imagina todas as texturas, os possíveis momentos ou pensamentos que orbitaram em torno da presença de João Gilberto no show que ele faria no Canecão, no Rio, e desistiu por causa do som ruim. Sérgio aproveita tudo o que pode no ato de defender a não-realização do show de João Gilberto como um manifesto musical.

João Gilberto era um músico tão criterioso, cujo compromisso com a sonoridade era tamanho, que ignorava sua própria presença. Provavelmente, ele se via como parte do instrumento que tocava. Voz, melodia, corpo e violão eram um só. 

Trecho do conto ‘Dueto’

Como pequenos contos dentro do conto, os textos tem títulos e personagens independentes. Em comum entre eles, somente o ‘autor’, o próprio Sérgio a observar os acontecimentos e se travestir de objetos, animais ou personalidades. O que é genial neste conto é o modo como Sant’Anna costura o fazer com o texto escrito e futuramente publicado sem que haja confusão. O completo domínio para escrever “um livro de contos, textos que discutem o dizer e o não dizer. Um livro que buscar algo assim como o silêncio” (pág. 179). 

Feito um malabarista, Sérgio joga o alfabeto para o alto e, ainda que seus malabares caem no chão, eles caem de pé. Como nesse verso: 

“Curioso esse apelido tirado do nome do Antônio Carlos Jobim: Tom. Consequência da música ou, desde o principio, uma predestinação? Do mesmo modo que as iniciais dos nomes do Milton Nascimento: Minas. É isso”. (pág. 171). 

As memórias do escritor são derretidas até se tornarem memórias de alguma voz. Em ‘O Submarino Alemão’, Sant’Anna extravia o pensamento freudiano para investigar um sonho que teve com o pai. O sonho se abre para outro sonho e para mais outro, até existir um quebra-cabeças perfeitamente montado, cuja figura final não tem definição única. É um espelho: se vê apenas quem olha para ele.

Em ‘Cenários’, Sant’Anna apenas descreve. Só isso. É um texto onde seu talento é visto com tanto esmero, com tanta engenharia, porque a história é justamente a composição de cenários, de matéria. O que você, leitor – ou quem – pode incluir dentro desses cenários? 

A pergunta não é uma brincadeira. É uma provocação muito dolorida, já que a imaginação de Sérgio Sant’Anna entrega de maneira perfeita um texto que não precisa ser preenchido, pelo menos não durante a leitura. É um crime entre leitor e escritor sem flagrante; um crime que precisa de tempo de maturação para que se escute o silêncio preso dentro do texto. 

A essência de tanta técnica narrativa, de tanta criatividade e saber humano para extrair de homens, mulheres, pássaros e cantores perfeitos como o próprio João Gilberto foi, pode ser lida de várias maneiras durante a leitura. É um livro de contos aparentemente ilhados, sem um tema comum. É só impressão. 

Ainda no final de ‘Dueto’, a interpretação de todos os textos atinge um estado febril de cumplicidade. Ao encerrar o conto em parágrafo onde o leitor pode ler o personagem como sendo a voz de uma mulher ou como a de um homem, Sérgio Sant’Anna recupera todos os sons perdidos na busca pelo silêncio e os introjeta para dentro de nós. O casal agora está unido. São um só. E, como efeito desta alquimia corporal, também são duplos um no outro. 

Sérgio Sant’Anna, infelizmente, morreu de Covid-19 ainda em 2020, de maneira pouco poética. Estava em plena forma aos 78 anos. 

Se o resultado é solidão, ‘O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro’ é também coisa mais linda da literatura brasileira. É um livro desafinado.

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