Julie (Renate Reinsve) vai fazer 30 anos e pulou do curso de medicina para psicologia, desse último para fotografia e agora, quando “A Pior Pessoa do Mundo”, o filme de Joachin Trier começa, ela trabalha em uma livraria.
Alternando empregos com a mesma velocidade com que troca de namorado, Julie conhece em uma festa o quadrinista 15 anos mais velho do que ela, Aksel (Anders Danielsen Lie), e se apaixona.
Assim que terminam de transar, ele avisa: “aqui é a linha. Se passarmos disso, vou me apaixonar e você precisa ter certeza do que quer”.
Ela não tem. Poucas pessoas com a idade dela hoje tem essa certeza do que querem. Talvez, 30 anos atrás, quem beirava essa idade já tinha casado, filhos e prestações da casa própria para pagar.
É uma agonia geracional. Julie faz parte de uma geração que esticou a adolescência com suas múltiplas dúvidas abastecidas pelas também múltiplas oportunidades oferecidas pelo mundo atual. Ela não sabe exatamente o que quer porque há tantas possibilidades, tantos caminhos novos, que sofre um sofrimento, uma espécie de anulação antecipada.
Os conflitos entre Julie o namorado se evidenciam à medida que ele insiste em estabelecer a rotina óbvia dos relacionamentos: quer ter filhos, quer ter uma vida tranquila, cujo futuro pode ser tão bem trabalhado que o mínimo de improviso o faz respirar aliviado.
Ligada no piloto-automático, Julie sofre uma angústia paradoxal. Aos 30 anos, você realmente precisa escolher por alguma coisa na vida ou a escolha impede que você viva plenamente?
Sem achar respostas óbvias, “A Pior Pessoa do Mundo” é um filme muito mais interessado em instigar, em retratar as ambições (e, especificamente a falta delas) como um ativo moderno de compensação de vida. Saber o que quer é tão magnético e tedioso quanto não saber.
O tal equilíbrio adulto, o limbo no meio do furação, é um terreno doméstico enganoso. E tanto Julie quanto Asklen vão descobrir isso de maneira dramática.
O diretor de “A Pior Pessoa do Mundo”, Joachin Trier, escreveu o roteiro com o amigo, Eskil Vogt. O entrosamento entre eles está na tela. Os dois conseguem fazer um paralelo tão bem escrito, tão real, corrosivo e ao mesmo tempo terno dos temas modernos abordados no filme, que beira ao documental.
Sua direção é calma, com enquadramentos muito simbólicos, e focada no desenvolvimento da protagonista. Trier tem plena noção de tempo e espaço para cobrir esse trecho da vida, essa crise dos 30, não como uma fotografia sentimental, e sim como um espelho universal.
O texto ganha vida extra na interpretação de Renata Reinsve – provavelmente, a melhor atriz do ano. O modo sincero como ela transita entre a dúvida e o caos, entre a paixão e a tristeza, entre o amor e o mais puro enfado, é realmente bárbaro. Já Anders Danielsen Lie tira de seu personagem uma maturidade dúbia, igualmente cheia de incertezas, mas um pouco à frente de Julie porque o mundo dele não tinha internet. Ainda que a vida digital não seja ricamente explorado, as reclamações de Aksel sobre ‘se relacionar com o objetos e passar cultura através deles’ é muito real. E o ator acha o tom exato para se livrar de qualquer recurso piegas.
Em uma das melhores cenas do filme, quando Julie termina com Aksel depois de entrar de penetra em uma festa de casamento e conhecer outro homem, ela literalmente congela o tempo para entender como seria viver um dia com o novo amor.
O recurso narrativo é criativo e bastante simbólico. Essa geração não quer escolher; quer viver em mundos paralelos; viver todas as vidas e possibilidades ao mesmo tempo, sem pausa ou consequências.
Mas, como escreveu Caetano Veloso, ‘a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou, eu te quero (e não queres) como sou, não te quero (e não queres) como és.’
Pois é. O amor, em qualquer idade, é um ponto de definição e um ponto de encontro. Ainda que cheio de incertezas, ainda que falho e assustadoramente adulto, é o sentimento que abre a porta para que o pior e o melhor de nós entre no mesmo lugar.
“Quando a vida deveria começar?”, se pergunta Julie. Depois de quatro anos acompanhando a vida dela – o período que o filme cobre – fica mais fácil entender a crise dos 30 da protagonista (e também a nossa que assiste): “A Pior Pessoa do Mundo” é aquela que prefere não viver nada em nome de um plano detalhado de como viver tudo.
Não rola. A vida é feita de espantos.