Chegamos ao belíssimo Nordeste. Uma região não só maravilhosa pelas suas paisagens estonteantes e pela riqueza de sua cultura, como também pela literatura. E quando falamos de mulheres, a literatura nordestina nos mostra uma potência tão grande que eu dividi essa viagem pelo Nordeste em duas partes. Na primeira, teremos Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Bahia. E a viagem começa agora. Vamos lá?
Alagoas
No estado de Alagoas, encontrei duas leituras de escritoras muito interessantes. A primeira em poesia, a segunda em prosa.
Ana Karina Luna
Antes mesmo de ler o trabalho da Ana Karina Luna, o que me surpreendeu foi a dedicação no processo de fabricação do livro. Li “Saindo da piscina de éter” por e-book, mas fiquei fascinada que a versão impressa é feita manualmente. Não apenas esse, mas todos os seus livros são feitos assim.
Sobre a escrita dela, vale destacar o trecho de um poema para exemplificar: “A vida que vivo é boa / certinha no que há de ser, / congruente aos meus olhos de forasteira — / Justa, segura, eficaz e até exemplar. / Mas não é minha.” A maioria dos seus poemas traz o aspecto questionador, de olhar a vida com olhos de uma visitante que não reconhece e questiona o machismo e as convenções. É uma obra que nos faz refletir sobre tudo o que nos cerca e nos faz mulher.
Arriete Vilela
Li e adorei o livro “Lãs ao vento”, de Arriete Vilela. O que mais me chama a atenção é a sensação de que estamos vendo uma escritora experimentar a escrita ao vivo. Não apenas porque a protagonista é uma autora se correspondendo com a sua editora, mas porque ela mistura formatos, traz lendas, reconta histórias e muda o tom em diversos momentos. Você realmente sente que a Arriete está procurando os limites do papel e os expandindo dentro da escrita. Foi uma leitura que me surpreendeu.
Sergipe
O Sergipe foi um estado que eu preenchi com facilidade com leituras que fiz no ano passado e gostei muito. Foi muito legal o processo de revisitar essas histórias, me fez perceber a importância de fazer isso mais vezes.
Tina Correia
A Tina publicou um livro pela primeira vez aos 75 anos e lembro que foi justamente esse motivo que me levou a comprar o seu livro de estreia. Acho realmente maravilhoso ler autoras mais velhas e raramente me decepciono com elas.
O livro “Essa menina” (Editora Alfaguara) foi lido bem no começo da pandemia e caiu como uma luva para o momento. É uma leitura que começa leve, com a narradora detalhando toda a sua infância, quando ainda era chamada de “essa menina”.
E apesar de abordar alguns assuntos muito pesados, é contado de uma forma tão leve que dá a impressão de uma conversa sentada na mesa tomando um café. Mas, assim como a personagem, a história acompanha o seu crescimento e perdemos o véu da inocência e a vemos começar a enxergar o mundo exatamente como ele é. É o tipo de livro para devorar em uma sentada com um bolo quentinho recém saído do forno.
Thainá Carvalho
Conheci o trabalho da poeta Thainá através do livro “As coisas andam meio desalmadas” (Editora Penalux). E foi uma leitura muito interessante. Lembro que comecei dando umas folheadas e, quando vi, já havia passado da metade. Seus poemas me pegaram pela mão e fomos juntas página por página.
Sua escrita é clara e simples, mas a forma como ela aborda tudo é muito emocionante. É complexo, são aqueles sentimentos que passam pela nossa cabeça mas não achamos palavras para defini-los. Mas a Thainá acha, e nos entrega assim, de uma forma linda demais. Meu poema favorito foi o “Desencontro”.
Taylane Cruz
A Taylane é autora de livros como “O sol dos dias” (Editora Penalux) e “A pele das coisas” (Editora Multifoco). Ambos são livros de contos, um gênero que tem um lugar especial no meu coração porque contar histórias em poucas páginas tem muitos desafios. Quando li “O sol dos dias” gostei muito da forma como cada narrativa é diferente da outra, sendo impossível de enjoar com o passar da leitura. Mas, apesar disso, todos eles têm a mesma costura: uma inocência que é quebrada com a brutalidade, como se nada que é doce pudesse durar muito tempo. O meu conto favorito foi o “Ilha dos passarinhos” e me causou um mal-estar danado.
Pernambuco
Pernambuco é um estado com tantas autoras maravilhosas que, infelizmente, precisei cortar alguns nomes para não ficar muito extenso. Um estado que bate de frente com São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Ceará quando o assunto é literatura escrita por mulheres.
Martha Batalha
Provavelmente, você já ouviu falar do trabalho da Martha. O livro “A vida invisível de Eurídice Gusmão” (Editora Companhia das letras) virou filme e foi a aposta brasileira para o Oscar em 2019. Foi meu primeiro contato com o trabalho dela e já me pegou de um jeito que foi difícil de largar.
O livro conta a história de duas irmãs tentando se entender mulheres e sobreviver além dos papéis que são impostos a elas, em uma época em que o silêncio era o ideal para as moças de família. É uma leitura que faz refletir sobre tudo o que veio antes de nós e como se reflete hoje. E esse caráter questionador também se encontra no outro livro da Martha, “Nunca houve um castelo” (Editora Companhia das Letras).
Nesta obra, acompanhamos toda uma família, se debatendo, de geração em geração, para encontrar o seu próprio lugar. É um pouco difícil dar muitos detalhes da história sem vazar algum spoiler, por isso vou falar o que faz o trabalho da Martha ser tão irresistível: os questionamentos, a descrição de personagens (até o menor deles tem uma história completa, dando a impressão de serem absurdamente reais) e, principalmente, sua escrita sagaz e afiada. Martha tem aquele humor elegante que faz a gente dar um sorriso enquanto lê.
Micheliny Verunsck
Micheliny é uma autora que estava no meu radar há muito tempo e acabei demorando para ler. Não sei quantas vezes namorei o livro “Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida” (Editora Patuá) antes de finalmente botá-lo no carrinho. E isso aconteceu logo após eu ler o “Som do rugido da onça” (Editora Companhia das Letras), lançado ainda esse ano.
O que mais me surpreendeu em “O som do rugido” é a forma absurdamente linda, forte e poética em que a autora mostra o lado de Iñe-e. A história conta, através de cortes no tempo e mistura de personagens, a triste história das duas crianças indígenas (Iñe-e e Juri) sequestradas no Brasil e levadas para a Europa, onde morrem pouco tempo depois.
A escrita é vívida e joga diferentes imagens para a nossa cabeça quase como um filme. O outro livro, “Minha Teresa”, é a história de uma menina canonizada após se suicidar em uma cidadezinha no Brasil. O que mais me chamou a atenção neste livro foi o narrador, meio debochado, meio cínico e até desesperançoso que conta tudo revelando muito pouco o que é, cabendo ao leitor juntar as peças sozinho. Foi aquele livro carrapato: pegou, grudou e não soltou mais.
Laís Araruna de Aquino
Conheci a Laís justamente por conta dessa coluna e sempre serei grata a ela por isso. A melhor forma de descrever os dois trabalhos dela é: o silêncio antes do grito. Sabe aquele momento em que você tenta absorver de forma racional algo, junta os fatos, mas vai se sentindo pequena até o ponto de explodir? É isso que sentimos ao folhear cada um de seus poemas. Em “Juventude” (Editora Reformatório) temos contato com a forma muito particular da autora de ver o mundo e de contestar coisas como a morte, o tempo, a saudade. Vendo beleza dentro desse caos em que estamos.
Neste ano, ela lançou outro livro: “Nós só compreendemos muito depois” (Editora Corsário-Satã). Já fiz questão de ler e achei tão potente quanto o outro. Neste livro, o silêncio é ainda mais presente, não de uma forma meditativa como antes, mas como uma indagação da sua função no mundo. A saudade também se faz presente por mostrar a morte da avó, que aparece em “Juventude” como companhia, e no novo livro como uma dolorosa ausência. “O que resta da língua / a cada vez que falamos / é a sua falta.” Ler a Laís é uma experiência para dentro. É necessário absorver tudo com calma para então analisar e enfrentar o nosso próprio silêncio.
Veja a resenha de “Juventude” aqui.
Cida Pedrosa
A Cida Pedrosa chegou até a mim pela indicação da Juliana Leite durante a nossa entrevista no Novas Clarices. Na época, ela falou algo que me deixou muito curiosa: “Esse não é um livro que merece a gente. Tomara que a gente mereça ler Cida”. Comecei então com Gris (CEPE Editora) e achei muito legal a forma como a saudade de casa e a busca por entender o “ninho” de onde veio é retratada. E, depois, ela fecha essa busca com chave de ouro em uma escrita de tirar o fôlego em “Solo para Vialejo” (CEPE Editora), vencedor do Prêmio Jabuti do ano passado em duas categorias, Poesia e Livro do Ano. Como eu falei na minha resenha: “É um livro vivo, que respira entre os nossos dedos, que batuca, que canta, que dança. Do que é formado um determinado local? Não apenas por suas histórias, mas por tudo o que está inserido dentro dele: seus costumes, suas lendas, as pessoas, as músicas. E é isso o que a Cida traz de uma forma linda, trançando as letras, abusando das repetições e das palavras semelhantes para criar um ritmo surpreendente. Me peguei mais de uma vez lendo em voz alta para sentir na ponta da língua tudo aquilo que o poema poderia me oferecer”. Uma dica: faça um favor a você mesmo(a) e leia a Cida.
Assista a entrevista que fiz com a Cida Pedrosa aqui. E a resenha de “Solo para vialejo” aqui.
Adelaide Ivánova
Uma porrada. Não tem como descrever o livro “O Martelo” (Garupa Edições), da Adelaide Ivánova, de outra forma. Apesar de curta, essa obra exige muito fôlego porque é impossível ficar indiferente ao seu trabalho. Precisei parar em alguns poemas e absorver tudo em silêncio. Não apenas pela beleza dos versos, mas por toda a luta que existe neles. Eles nos mostram como o corpo feminino é domado, censurado, usado e repreendido por toda a sociedade em diversas situações. Além disso, tudo no livro é trabalhado para instigar o leitor. A capa é impressa com um tipo de tinta que mancha a mão de quem toca de vermelho. Forte né? Quero muito ler os seus outros trabalhos: Polaroides (Edições Macondo) e 13 nudes (Edições Macondo), mas estão todos esgotados. Uma dica para quem está curioso sobre o trabalho da Adelaide: assista sua apresentação na Flip, você não vai se arrepender. O link está aqui.
Adrienne Myrtes
O livro da Adrienne, “Mauricéa” (Editora Edith), foi a indicação da escritora Cida Pedrosa durante a sua entrevista lá no Novas Clarices. E, como não sou boba nem nada, fui correndo adiantar essa leitura. Não quero dar muitos detalhes da história para não correr o risco de entregar algum detalhe crucial para vocês, mas temos aqui uma narrativa potente de quem, ao se ver presa na cama após um ataque homofóbico, precisa encontrar alívio e redenção nas próprias memórias. “Nesse mundo feito por e para homens, desperdicei a oportunidade natural de ser senhor, me fiz senhora”. É um livro incrível.
Bahia
Um lugar de leituras muito interessantes. Inclusive, uma delas virou uma das favoritas da minha vida.
Brisa Paim
Quer aprender o que é uma escrita linda, trabalhada e absurdamente leve ao leitor? Leia o maravilhoso “A morte de Paula D.” (EDUFAL) da Brisa Paim. Um livro que conta a história de uma mulher que vive uma vida que não parece sua, mas de todo mundo, pois só faz aquilo que esperam dela. Até o dia que encontra o livro “A morte de Paula D.” na estante de casa e decide tornar-se ela. Acho difícil falar mais do que isso sem dar muitos spoilers, mas com certeza é uma das minhas leituras favoritas da vida.
Leia aqui a resenha do livro que fiz no Novas Clarices.
Luciany Aparecida
Uma escritora sempre é múltipla, mas a Luciany eleva isso quando cria outros nomes na hora de publicar. Um deles é o de Ruth Ducaso, que assina os livros “Contos ordinários de melancolia” e “Florim”. Seus textos têm um aspecto cru, denso e até assustador que muito me fascina. Sabe aquela sensação de “o que está acontecendo aqui”? É assim que a Luciany nos surpreende. Em “Contos ordinários” são diferentes tipos de histórias e, a grande maioria delas, beira o absurdo e nos tira o ar enquanto se desenrola na nossa frente.
Leia a resenha aqui.
Júlia Grilo
A Júlia acabou de lançar o seu primeiro livro “Cães” (Editora Penalux). Nele, conhecemos a história da cadela Cafeína entrelaçada com a da própria narradora, vendo seu crescimento, amadurecimento e, principalmente, questionando o que separa o homem dos outros animais. É uma leitura que me chamou atenção tanto pelo fluxo da história, que me surpreendeu e me pegou desprevenida em diversos pontos, quanto pela escrita em si. Júlia escreve de uma forma séria e até dolorosamente real, ela rebusca o que precisa de enfeites para se olhar de perto. É um livro que percorre um longo caminho, mas que não nos cansa de jeito nenhum. Pelo contrário, é o tipo de leitura de uma única sentada. Um belo livro de estreia, já estou curiosa pelos próximos.
Maria Luiza Machado
Eu gosto muito do trabalho da poeta Maria Luiza Machado. Comecei com o seu último livro “Tantas que aqui passaram” (Mormaço Editorial) e achei interessante o seu cuidado ao dedicar cada poema para uma mulher diferente. Ao contrário da prosa, onde você tem mais espaço para desenvolver as personagens, na poesia é preciso ter um olhar afiado e uma escrita inteligente para trazer toda a essência em poucas linhas. O meu favorito é o “Rafaela”, mas não faltam poemas interessantes. E depois de gostar tanto desse trabalho, fiz questão de ler o seu livro anterior, “Todos os nós” (Editora Penalux), que traz uma relação muito bonita dela com a escrita e a necessidade de encontrar um lugar de conforto e de confronto dentro da poesia.
Você pode ler a resenha de “Tantas que aqui passaram” aqui e a entrevista que fiz com ela aqui.
Como vocês puderam ver, boas indicações não faltaram na nossa viagem pela primeira parte do Nordeste. Não vejo a hora de compartilhar a segunda parte com vocês. Se gostou, compartilhe e ajude a divulgar o trabalho incrível destas mulheres. Até mais!
Este post todo é de uma beleza só! Fico feliz de estar aqui ao lado de tantas escritoras excelentes. Para quem se interessou, tem mais informações sobre Cães aqui: linktr.ee/juliagrilo