Você é só um garoto

Você é só um garoto Você é só um garoto

— Mas, você é um gênio Will, ninguém pode negar isso.
Ninguém pode avaliar o quanto você é profundo.

As palavras acima foram proferidas pelo psiquiatra Sean Maguire, personagem de Robin Williams em Gênio Indomável (Good Will Hunting), filme de 1997, dirigido por Gus Van Sant, com roteiro de Matt Damon e Bem Affleck, que venceram Oscar pela obra, junto com Williams que levou a estatueta de melhor ator coadjuvante. Maguire conversava com Will Hunting (Damon), protagonista do longa, que está na pele de um garoto problemático, lutando com seus dilemas pessoais, aparentemente comuns. Na cena, pouco antes de chamá-lo de gênio, Maguiere também diz que ele é um “garoto metido, briguento e assustado”. Sim, Will Hunting era um gênio, mas isso não o ajuda muito.

“A inovação é o que resta quando todos os nossos fracassos são removidos.”

– Kevin Ashton, em A história secreta da criatividade.

Depois de cumprir o ritual de celebração dos 20 anos de lançamento desse que é um de meus filmes favoritos, comecei a pensar no quanto essa obra é atual e, definitivamente, um belo e profundo olhar sobre natureza humana. Will era capaz de resolver os problemas matemáticos mais sofisticados que lhe dessem. Lia compulsivamente. Mas, era incapaz de lidar com as próprias emoções e, principalmente, com as emoções alheias. Isso lhe rendeu dificuldades e um vasto e doloroso histórico policial. Sua genialidade não era capaz de resolver seus próprios problemas. Era um fracassado. Pelo menos, aparentemente.

Diferentemente dos gênios que conhecemos, Will era um cara que se dedicava aos assuntos que lhe interessava, ia fundo até saber o máximo que pudesse. Tinha garra. Não tinha apenas nascido com um dom, ele afiava sua atitude diariamente, página após página, equação após equação. Mas, isso não resolvia seus problemas. Ele ainda estava sozinho, cercado de amigos inúteis, frequentando espaços onde não encontrava respostas, sendo obrigado a voltar para dentro de seus livros, onde as respostas tinham cheiro e gosto de papel. Nenhum calor humano. Seu esforço o leva conhecer gente nova que o ajuda a começar a ver um mundo que não imaginava existir. Um mundo que tinha cores, cheiros e formas, mas inclui pessoas que o confrontavam de uma maneira que ainda não tinha experimentado.

O fracassado entra em conflito. A fera se debate na jaula com medo de uma realidade que o assusta e apavora. Tudo isso me fez lembrar das revoluções tecnológicas que estamos vivendo. Também estamos com medo de seus efeitos. Demos de cara com essa avalanche de novidades que nos inundam, como tornados que não nos dão trégua. A água não para de subir e estamos apavorados, sem saber como lidar com essa situação. Estamos apavorados por não saber se vamos sobreviver. Tememos o fracasso. Tememos a face gutural e o peso da presença de uma revolução que não para nunca. Metamorfose ambulante.

“Se você não experimenta o fracasso está cometendo um erro muito maior: está sendo guiado pelo desejo de evita-lo.”, diz Ed Catmull da Pixar. Para ele, essa estratégia — a de evitar o erro a qualquer custo —, principalmente para os líderes, leva ao fracasso certo. A busca doentia pela perfeição, sem considerar o poder que os erros têm de nos alimentar para um crescimento saudável e sustentável, é um tiro certeiro no core de nossas melhores intenções.

Will era um rapaz apaixonado por sua arte, mas que não oferecia vazão a ela. Estava escondido em um mundo artificial, criado para protegê-lo, rodeado de personagens previsíveis, os quais podia controlar suas falas rasas e também a hora de virar a página da história que não lhe agradava ou queria continuar. Ele queria sair dali, mas não tinha ideia de como. Até que a sua fúria e violência de estimação o levaram ao encontro daquilo que mais evitava.

A paixão não realizada cria uma lacuna entre nosso presente e nosso potencial. Acredita Kevin Ashton. E eu também. E o filme mostra isso. E a realidade ao nosso redor não nos oculta essa verdade. Muito da violência que tempera nossas relações sociais é o resultado de gerações e mais gerações de pessoas que não conheceram a sua verdadeira arte. Que não descobriram ainda o seu propósito maior. Piegas? Talvez. Mas a violência não é. Ela está aí e não dá pra negar. Para Ashton a paixão não realizada é “um vazio que pode causar destruição e desespero ou levar à estagnação”. Para ele, se não perseguirmos nossos sonhos, eles vão nos perseguir sob a forma de pesadelos. “A paixão não realizada cria vícios e criminosos”, afirma.

Will era só um garoto ingênuo. A inexperiência o espancava de muitas formas e deixou nele marcas impossíveis de serem apagadas. Exatamente como a vida faz com todos nós, quer aceitemos essa verdade ou não, quer sejamos ricos e milionários ou não, quer tenhamos sobrenomes, frigoríficos ou altos cargos no governo. A vida bate para que a ingenuidade sirva de desculpa. Gente talentosa é apenas gente. Mal humorados ou não, ainda são pessoas, sujeitas às mesmas paixões que qualquer um de nós. A vida cobra, e as revoluções serão feitas sempre por pessoas que saíram de seus mundinhos coloridos para descobrir a realidade dura, mas que oferece mais possibilidades. Para Ashton, os grandes criadores trabalham quer sintam vontade, quer não, quer estejam no clima, quer não, quer estejam inspirados ou não. “Seja crônico, e não agudo”, comenta. Para ele, o sucesso não ataca, ele se acumula.

As Inteligências Artificiais são, hoje, o grande trunfo das empresas de tecnologia. Esses sistemas estarão controlando todos os dispositivos eletrônicos disponíveis no mundo todo, em breve, quer aplicados na pele, numa tela sensível ao toque, em óculos digitais ou plugados diretamente aos nossos cérebros. Ou não! Ninguém pode afirmar nada e nem mesmo negar, certo? Afinal, essa tecnologia ainda é apenas uma criança. Muito jovem e ainda ingênua. Ironicamente, será baseada em nossas próprias experiências. Vão aprender com a gente. Vão experimentar o mundo e ler a vida através de nós. Corremos algum risco? Vão se tonar violentas? Indomáveis? Impossível dizer. Afinal, qualquer tecnologia baseada em nossas próprias experiências precisa ter o potencial de superar qualquer coisa, caso contrário não teria nada de humano nela. A história está aí para provar isso. Eu acredito!