Hoje em dia todo mundo tem uma história parecida para contar: você estava com os amigos (ou com a família, com o chefe, com a namorada) conversando sobre uma coisa muito específica (uma viagem que quer fazer, uma roupa que quer comprar, um show que quer assistir) e, logo depois, um monte de anúncios relacionados a esse tema começam a pipocar em seu celular – seja no Facebook, no Twitter ou no Instagram – sem que qualquer pesquisa nessas redes ou no Google tenha sido feita. A pergunta que fica já virou um clássico: afinal, nossos dispositivos realmente podem nos ouvir?
Testa aí…
A resposta de antemão é: não, seu celular não está te ouvindo. A essa altura, dificilmente exista um software secreto que quebre leis locais, estaduais e federais, além de uma série de medidas relacionadas à privacidade e vigilância, sem que nenhuma agência, marca ou profissional tenha trazido isso à tona.
Essa sensação de anúncios que “adivinham” o que você estava pensando está muito mais relacionada com todo o seu conjunto de comportamentos online – incluindo aqui as políticas de privacidade, termos e condições com as quais você concordou muito provavelmente sem ler até o final, interpretado por ferramentas de aprendizado de máquina bem evoluídas que entregam essa capacidade de colocar a mensagem certa na frente da pessoa certa, ainda nas horas e locais certos.
Às vezes você nem se dá conta, mas há por aí uma série de dados a seu respeito que são públicos, como seu endereço (na lista telefônica), o seu carro (na lista de garantias), suas propriedades e contratos de aluguéis (registros públicos), seu trabalho (Linkedin), por quantas pessoas você é responsável (deduzindo pelos dados de compra), o que você gosta de comer ou assistir (aplicativos e posts nas redes sociais), onde você jantou (informações de cartão de crédito – que são legais uma vez que a empresa tenha uma relação comercial com você), suas dívidas (relatórios de crédito) entre muitos outros. Quanto mais dados você tiver, mas precisas serão as previsões que essas máquinas farão sobre você, sua personalidade e seus gostos. Ou seja, já era…
Além disso, tudo o que você faz online pode ser rastreado. A máquina consegue perceber quando você está rolando a timeline das redes sociais e para por conta de determinado anúncio, meme ou mensagem; quais ícones você clica; se você joga; se usa apps para se exercitar; se costuma meditar com ajuda de aplicativos; se frequenta sites de compras online; se conversa com a Siri, Alexa, Cortana ou demais dispositivos de voz e por aí vai. Todos esses comportamentos são capturados, registrados e usados para enriquecer seu “perfil” online.
A partir desses dados, você é colocado como parte de várias classes que incluem membros de sua família, amigos e comunidades de interesse. Se você foi matematicamente colocado em uma classe com pessoas que provavelmente discutem comida vegana, por exemplo, verá anúncios de comida vegana. É uma coincidência que você estava falando sobre comida vegana? Não. O algoritmo estava “92%” confiante de que você tinha “71%” de chance de falar sobre esse assunto, por isso jogou um anúncio nesse sentido pra você. Ou, pensando de forma mais ampla: se você tem um estilo de vida slow, consome orgânicos, pratica yoga, compra de pequenos produtores e se interessa por meio ambiente – tudo isso devidamente registrado no seu comportamento online – a chance de você se interessar por comida vegana é ainda maior. O nome disso é análise de regressão, que pode ser usada para inferir relações entre variáveis independentes e dependentes.
A conclusão é que ao menos que você esteja sob vigilância de uma agência governamental com mandato ou sendo espionado ilegalmente (vai saber), ninguém está ouvindo suas conversas para colocar determinadas mensagens ou conteúdos publicitários na sua frente. No entanto, todos os outros dispositivos, incluindo Alexa e Google Assistant, tomam os comportamentos que você exibe e dados que possam ser coletados sobre você para fazer previsões certeiras. Portanto, na prática, tudo está “ouvindo” você, mas não de forma direta. Não tem nada a ver com humanos ou robôs com fones de ouvido atentos ao que você comenta nas suas rodas de conversa, e sim com computadores em data centers trabalhando com inteligência artificial.
Temos a mania de achar isso ruim, mas talvez, em algum momento, algo de bom saia daí…