Quem trabalha com marketing e comunicação está vivendo duas pandemias ao
mesmo tempo: a pandemia da Covid-19 e a pandemia dos reports e artigos de
tendência tentando entender como vai ser o mundo do marketing e da comunicação
pós-Covid-19. A cada semana nossos feeds e caixas de email são inundados com
conteúdos de diferentes níveis de qualidade, que vão da projeção criteriosa à
especulação enviesada passando por fantasias derivadas da boa-fé. Embora não
faltem trabalhos sérios que ofereçam, de fato, insights e caminhos valiosos, muitas
vezes parece que o hábito contemporâneo de produzir novidades bombásticas acaba
gerando mais ruído do que esclarecimento e os gestores de marca ficam com as tais
bombas no colo, prontas para explodir a qualquer momento: afinal, 2021 será
finalmente o ano da inteligência artificial? Da internet das coisas? Novamente dos
podcasts? De uma nova leva de influenciadores? De um retorno a uma vida mais
humana?
Assim como no âmbito pessoal muitos de nós se voltaram para dentro em busca de
um eixo para lidar com as dificuldades da vida em pandemia, da mesma forma os
gestores de marca devem confiar mais do que nunca no que Paul Kemp-Robertson,
cofundador da plataforma digital Contagious Communications, chama de “princípio
organizador”. Em um artigo de agosto último, Kemp-Robertson define o princípio
organizador como “uma manifestação clara da razão de ser de uma empresa, o ponto
central que lhe dá sustentação”. É comum que se chame isso de Propósito, uma
expressão usada de forma tão intensa e superficial na última década que acabou
sendo colocada na caixa dos modismos corporativos cínicos. Mas o fato, Kemp-
Robertson defende e eu acompanho, é que a maior parte das empresas tem ou
precisa ter algum tipo de princípio organizador, seja ele formulado como Propósito,
Missão, Visão, Brand Tagline ou como qualquer outra forma de direcionador
estratégico sintético. E uma vez que vivemos “dentro do nevoeiro” (metáfora do
arquiteto e professor da FAU-USP Guilherme Wisnik para o mundo confuso no qual
andamos imersos), o princípio organizador continua a ser um valioso vetor de tomada
de decisões estratégicas – o que inclui definir a quais ondas emergentes da tecnologia
a empresa e suas marcas vão se vincular.
O ano de 2021, ao que tudo indica, será de aprofundamento da aceleração digital que
se iniciou em 2020 como consequência indireta da pandemia nos diferentes setores.
Sem dúvida, todas as marcas precisarão manter ou aumentar o movimento de
inovação, agilidade e flexibilidade digital que esse ano exigiu. Mas, diante de uma
oferta cada vez maior e mais facilitada de tecnologias, bem como de um crescimento
da demanda por produtos, serviços e conteúdos digitais, interseccionar oferta e
demanda pelo eixo do princípio organizador será mais importante do que nunca.
Traduzindo: quais são os produtos, serviços e conteúdos digitais que a marca pode e
deve oferecer às pessoas levando em consideração seu princípio organizador? O que
é que a marca pode e deve oferecer que se alinha com seu propósito, sua missão,
visão, valores ou conceito? A pergunta soa quase estúpida, mas não são poucas as
marcas que vimos fazerem movimentos digitais incoerentes com seu histórico e seu
DNA ao longo de 2020, jogando fora dinheiro e reputação, quando não prejudicando
diretamente a sociedade.
Por outro lado, também vimos diversas marcas que responderam à necessidade de
maior digitalização de forma alinhada a seu princípio organizador. Cases como a
coleção da marca de moda Amaro inspirada e lançada dentro do game Animal
Crossing, o botão de denúncias contra violência doméstica do Magazine Luiza, a live
do Emicida com a Pic Pay que arrecadou quase 1 milhão de reais para a ONG Mães
da Favela e a plataforma da Stone “Cuide do Pequeno Negócio” que trouxe conteúdo
e ações de apoio às PMEs durante a pandemia, mostram diferentes versões de uma
mesma abordagem: quando se fala de tendências digitais, é preciso respeitar o DNA
da marca e, acima de tudo, as consequências sobre seus consumidores.
Portanto, quando mais um report chegar no seu email com as 7 principais tendências
do digital para 2021 que se somam às 5 tendências que você ouviu em um podcast e
as 10 tendências que foram apresentadas naquela live, não se preocupe. Afogados
em dados e pesquisas, podemos esquecer que o futuro também depende das
escolhas estratégicas que fazemos e as escolhas que fazemos podem e devem ecoar
as verdades sobre as quais as marcas são construídas. Se, por um lado, seu
orçamento e calendário não comporta tudo que o futuro parece prometer, seu princípio
organizador certamente também não comporta. Marcas e pessoas andam melhor no
mundo quando sabem olhar pra dentro e alinhar seu comportamento com as suas
verdades.
Gustavo “Mini” Bittencourt é Head de Estratégia da DZ Estúdio, Mestre em
Design Estratégico e Professor da Graduação em Comunicação Digital da
Unisinos.