Denis Diderot (1713-1784) foi um filósofo francês. Junto com seu colega Jean d’Alembert (1717-1783), ele liderou a criação da primeira enciclopédia na Europa, uma obra monumental com 35 volumes, um grande dicionário de todo o conhecimento que a humanidade produzira até então.
Contra a vontade de seu pai, Diderot decidiu que seria escritor. E assim foi. Mas, como em quase todas as épocas e com quase todos os autores, essa é uma profissão que gera receitas contadas para a maior parte dos que se aventuram nela, até mesmo algumas figuras célebres. Bem, cumpriu-se a “maldição do pai” e Diderot se viu às voltas com uma falência e, aos 52 anos, não poderia arcar com o dote de sua filha, que estava prestes a se casar.
Seu ativo ou a propriedade mais valiosa era sua grande biblioteca, que ele havia reunido ao longo de muitos anos. Mas, para sua sorte, a imperatriz russa Catarina, a Grande (1729-1796), acabou sabendo do que se passava com ele. Figura famosa que era, fez a Diderot uma proposta irrecusável: comprar a biblioteca e lhe oferecer a função de ser seu gestor. Dizem que, em dinheiro de hoje, ele ganhou algo em torno de 50 mil dólares.
Acabaram-se os problemas de grana. Vida nova! Pelo menos, é que se poderia esperar no plano da fria racionalidade. Sua primeira decisão após a venda foi comprar um novo e belo roupão escarlate, para festas. Dinheiro no bolso, um emprego e um belo traje escarlate, o que poderia haver de melhor após o sufoco que ele havia passado?
Mas algo não estava bem. Diderot olhou em volta e sentiu o quanto seu belo traje não combinava com absolutamente nada que ele tinha em casa. Nem com as cortinas, nem com o tapete que deveria ser trocado por um Damasco. E aí foi a vez do espelho sobre a lareira, uma nova mesa etc. Enfim, seria necessária uma redecoração completa dos ambientes para integrar as partes que não dialogavam entre si. Em pouco tempo, suas aquisições cada vez mais luxuosas acabaram drenando suas valiosas reservas por completo.
Quem já fez reformas em casa sabe do que estou falando. Aliás, dizem que é a melhor forma de testar a saúde de um casamento. Séculos depois, muitos de nós ainda sofrem ou lutam sob o efeito Diderot, de duas formas opostas: submetem-se ou tentam se libertar dele. No “túnel” da pandemia, milhões e milhões de pessoas estão buscando a melhor estratégia para atravessar esse período.
Conheço pessoalmente muitas famílias e pessoas que aproveitaram esse período para rever suas políticas de ajuste das necessidades domésticas e pessoais. São as que não recorreram ao “traje escarlate” para justificar investimentos em novos padrões e impulsos de compras. Ao contrário, aproveitaram a oportunidade para redimensionar o que, de fato, seria o conjunto de suas necessidades mais importantes. Mesmo sem nenhum ato de violência contra seus desejos mais importantes ou suas fontes de prazer mais vitais. Não chegaram a implantar uma política minimalista, mas não foram aprisionadas pelo efeito Diderot.
Mas eu conheço, e acredito que você também, famílias e pessoas que têm enfrentado a pandemia de outra forma: recorrendo à armadilha do “traje escarlate”. São sempre políticas compensatórias. Ouvi, há pouco tempo, a seguinte frase de um chefe de família “encarcerado” com todos em casa : “Acho que vocês têm razão, essa nossa TV nossa não dá mais. Vamos aproveitar e pular pra uma smart e maior.” Ao que uma filha completou: “Mas aí, só Netflix não vai dar, né pai? Tem que ter também Amazon Prime e Disney+”. E outro “encarcerado” que escutava o diálogo se lembrou do sofá desconfortável com um rasgadinho na lateral e, lógico, do equipamento de som atual que iria estrangular o prazer do som da nova TV. Quem visitou home centers durante a pandemia deve ter visto o efeito do “traje escarlate” nos carrinhos e nas listas de compra dos clientes.
Acredito firmemente que esses opostos estejam buscando a melhor forma adaptativa de atravessar a pandemia e sair do “túnel”. Não ergo um juízo de valor em relação a qualquer um dos dois caminhos. Mas também não posso deixar de me colocar pessoalmente, antes que a dúvida fique no ar. Confesso que tenho uma certa quedinha pela primeira estratégia. Contra o traje escarlate, ergo o brasão da cidade de São Paulo: non ducor duco. Sempre? Não! Mas boa parte das vezes.
Lembro-me de um amigo adolescente que tive no Cambuci, um bairro em onde vivi durante muito tempo em São Paulo, do qual eu saí faz algumas décadas, mas que insiste em não sair de mim. Quando esse amigo dizia ao pai que queria comprar algo, uma roupa, um brinquedo, um livro, um disco, ouvia sempre o pai fazer três perguntas: Você quer mesmo? Você precisa? Você pode? A compra estaria garantida mediante três respostas sim. Eles certamente nunca tinham ouvido falar de Diderot e eu também não, mas criaram uma bela blindagem contra seu efeito.
Se posso resumir o que sinto: uma estratégia de exagerada resistência ao exercício do desejo de compra não nos faz nada bem durante esta jornada na pandemia. Da mesma maneira, o oposto não funciona porque não temos Catarina, a Grande, para nos tirar do buraco. A única certeza que tenho é que aproveitar essa delicada fase de nossas vidas para crescer pode se revelar um grande presente, ainda que compulsório. Afinal, tropicão também leva pra frente!