Uma resenha de Barbie, por um mero Ken

Uma resenha de Barbie, por um mero Ken Uma resenha de Barbie, por um mero Ken

Durante a minha infância nunca tive muito contato com a Barbie, apenas me lembro de colocar algumas das bonecas Mattel da minha irmã mais nova em posições constrangedoras quando era criança. Nunca tive uma memória afetiva sobre a marca em si, e mesmo assim estava curioso para conferir o filme mais recente da diretora Greta Gerwig estrelado e produzido por Margot Robbie nos cinemas.

Com o fenômeno social que foi “Barbenheimer” desde o lançamento mundial de Barbie e Oppenheimer, ambos no dia 21 de julho, é difícil alguém não saber do que se tratam os filmes. Esse movimento, que é muito caracterizado pela teimosia dos estúdios Warner e Universal em não mudarem a data de lançamento dos respectivos filmes para não conflitarem entre si, acabou gerando um frenesi não previamente mapeado por ambos.

Os dois diretores por trás das produções já são conhecidos pelo público (seja Greta por “Lady Bird: A Hora de Voar” e “Adoráveis Mulheres”, filmes que concorreram a diversas categorias em Oscars recentes – ou Nolan com a trilogia do Batman, “Interestelar”, “A Origem” entre outros), além de contarem com um elenco recheado de estrelas de Hollywood.

Uma resenha de Barbie, por um mero Ken
Um dos vários memes inspirados por “Barbenheimer“.

E nesse cenário, estive mais curioso para conferir o filme adaptado da linha de brinquedos da Mattel do que “Oppenheimer”. Obviamente eu não era único, já que o longa atingiu a marca de 1 bilhão de dólares em bilheteria durante o final de semana retrasado, feito que só fez aumentar ainda mais a enxurrada de críticas, tanto positivas quanto negativas, referentes a produção.

Qual o motivo disso? Apesar de ser uma marca tão popular do segmento de bonecas, por qual razão o filme deve vir a se tornar a maior bilheteria do ano?

Teaser trailer de Barbie, divulgado em janeiro desse ano.

O início da minha curiosidade foi despertado pelo teaser divulgado pela Warner a 7 meses atrás: sem nenhuma menção ao enredo ou a história, apenas uma adaptação do icônico “2001 – Uma odisseia no espaço” de como as bonecas Barbie foram popularizadas desde o seu lançamento.

Uma forma sutil e criativa de instigar um público que previamente nem esperava assistir ao filme nos cinemas, mas que começou a ficar curioso. Aliado a isso, o marketing da Warner soube capitalizar muito bem em cima de “Barbenheimer”, e foi o suficiente para que eu garantisse meu ingresso no final de semana de estreia.

Realidade > Expectativa
Barbie é um filme que constrói sua narrativa de uma forma simples, cheio de metalinguagem e uso de signos, e aos poucos traz um tema cada vez mais realista e reflexivo. É um filme feito para, obviamente, o grande público: apesar das declarações recentes do CEO da Mattel Ynon Kreiz, é nítido o uso do filme para capitalizar em cima não só de bonecas, mas acessórios e vestuário de forma geral dos personagens, além de diversos outros produtos.

O impacto é nítido: apesar de uma queda nas vendas referentes a produtos Barbie durante o primeiro semestre de 2023, apenas o mês de julho já registrou vendas superiores ao ano de 2022 como um todo por conta da adaptação em live-action. É um impacto cultural que, segundo a própria Mattel, será responsável não só pelas vendas de imediato, mas para o decorrer dos próximos anos.

Uma resenha de Barbie, por um mero Ken
Receita global da marca Barbie entre os anos e 2013 e 2022.

Felizmente, esse está longe de ser o único objetivo da produção: a abordagem do filme traz a percepção do público jovem da boneca Barbie através da personagem Sasha (interpretada por Ariana Greenblatt) como símbolo antifeminista por conta de padrões irreais de beleza reforçados pela boneca por décadas; a visão de mundo e questionamentos cotidianos de uma mulher do mundo real, Gloria (interpretada por America Ferrera), e também a forma como o patriarcado é impresso dia a dia no imaginário popular das mais diversas maneiras. Esses são só alguns dos temas pelos quais a brilhante Greta Gerwig costura seu roteiro.

Não só isso, mas os temas são passados de formas extremamente leves (na medida do possível): tanto homens quanto mulheres podem se identificar (e se envergonharem) com diferentes representações do dia a dia de comportamentos recorrentes.

Eu, particularmente, acesso o Duolingo de forma assídua. Quando uma cena do longa exibiu o pai de Sasha (a garota humana do longa) todo feliz ao acertar um dos questionários do app, com aquele sorriso de autorrealização, a carapuça serviu instantaneamente.

Outra, tão meticulosamente apresentada, constitui no vício em explicar (por parte dos homens) o porquê de o filme “O poderoso chefão” ser tão genial. Existe ainda outra representação masculina que insiste em explicar formas inteligentes de diversificação de investimentos e muitos outros clichês que vemos todos os dias seja pelos nossos amigos, namorados, familiares ou (em especial) nós mesmos.

Aqui está um dos motivos responsáveis pelas enxurradas de críticas negativas vindas, principalmente, do público masculino: a representação de algo tão certeiro que incomoda. Essa primeira reação de tentar “anular” o que o filme tem a dizer, de negação, mostra o quanto o filme significou para essas pessoas em questão.

Por conta disso, muitas pessoas criticam negativamente o filme por ser “woke” (um termo político que se refere a uma percepção e consciência das questões relativas à justiça social) e desprezam seu roteiro.

Do outro lado, existe a crítica de pessoas que acreditam que o filme poderia ser ainda mais incisivo em questões relacionadas ao machismo de forma geral: poderia ser menos colorido, mais realista e retratar questões tão sérias com mais contundência.

Um breve paralelo musical
Do ponto de vista de apenas um Ken: ver a situação acima me faz recordar de algo semelhante que aconteceu a 10 anos atrás, quando a cantora Beyonce lançou a música “***Flawless” de seu novo álbum da época.  A canção conta com a participação da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, citando um trecho de sua palestra realizada pela TEDxEuston.

Na época, essa participação foi o suficiente para que diversas críticas fossem levantadas a cantora do que poderia ser uma forma de se autopromover utilizando um ícone tão relevante para a causa feminista. Claro, no final do dia a Beyonce quer criar um conteúdo que permaneça no imaginário popular, e abordar uma pauta relevante como uma forma de atingir esse objetivo.

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Evolução de vendas do livro ‘Americanah’ da autora Chimamanda durante o ano de lançamento da música “***Flawless” (2013).

Entretanto, quantas pessoas não passaram a conhecer o trabalho da autora Chimamanda a partir dessa participação em uma de suas músicas? Depois do lançamento de “***Flawless”, o terceiro livro da autora, Americanah, passou da #861 posição dentre os livros mais vendidos pela Amazon naquele ano para, 11 dias depois do lançamento de Beyonce, a #179 posição. Ou seja, um efeito direto na divulgação da autora em si.

Um filme massificado (?)
O filme “Barbie” parece querer ser um meio-termo justamente para atingir a públicos que não seriam atingidos com uma produção mais sisuda, deixando de conversar com pessoas que são claramente apontadas dentro da própria produção. Ao chegar a uma espécie de meio-termo, ele se torna mais abrangente e atrai diferentes públicos, algo refletido pela bilheteria do filme.

A visão da diretora com Barbie parece ser justamente essa: como utilizar um produto massificado para representar algo além de uma mera boneca branca, loira e magra? Apesar da linha de brinquedos da marca já apostar na diversidade e inclusão a alguns anos com modelos dos mais variados estilos de corpos e ocupações, o imaginário popular continuava com a Barbie “estereotipada”, interpretada pela Margot Robbie.

Agora, (talvez) não mais: ao pensar em Barbie a visão do grande público pode passar a vir a partir do filme, podendo descontruir aos poucos uma percepção negativa que perdura por muitos anos.

Uma resenha de Barbie, por um mero Ken
A Barbie e o Ken “padrões” do filme, interpretados por Ryan Gosling e Margot Robbie.

Destaque masculino
Ainda avaliando as diversas críticas escritas sobre o longa, uma recorrente de alguns veículos de comunicação é o apontamento de que Ryan Gosling (o Ken padrão) tem mais destaque e tempo de tela que a própria Margot Robbie em si. Isso é bem verdade, e não seria nenhuma surpresa se o ator recebesse uma indicação a categoria “Melhor Ator Coadjuvante” na próxima edição do Oscar.

Entretanto, aqui acredito que haja um descasamento em relação a representação dos “Kens” no filme: por meio de uma paródia metalinguística, eles podem ser interpretados como uma representação das mulheres do mundo real. É uma forma de colocar minimamente os homens nos calçados das mulheres para entender, de forma bem didática, um pouco das situações que ocorrem no dia a dia do gênero oposto.

A busca por um espaço digno no meio profissional, a reflexão dos papeis nos relacionamentos e até mesmo a redescoberta do amor próprio: Ryan leva todas essas angústias em tela para um filme da Barbie (!).

Existem diversas outras cenas que podem ser exploradas: a “guerra” entre os Kens na praia, uma crítica clara ao gênero responsável pela realização de guerras sangrentas por toda a história da humanidade; a representação de executivos incompetentes personificados por Will Ferrell que não conseguem sequer passar de uma catraca da empresa sem crachá, mostrando uma falta de dinamismo recorrente em diversas megacorporações; ou ainda o desfecho de Margot Robbie ao conversar com Ruth Handler, criadora da boneca original, em uma conclusão do filme catártica e emocionante.

E, novamente, ressalto: tudo isso em um filme da Barbie, a boneca plastificada que até então não representava nada mais para o grande público do que um brinquedo para crianças.

A missão de Greta e dos produtores do filme não foi fácil (mesmo com o pitch em que a própria Margot Robbie apostou que o filme chegaria a U$ 1 bilhão em bilheteria), e ainda assim elas entregaram uma forma de reflexão voltada ao grande público com  bastante humor, mantendo uma pegada autoral.

De forma acertada, até então, a diretora negou que estaria considerando dirigir uma continuação do longa no futuro (kenough is kenough): talvez essa seja uma dessas experiências em que um único filme já tenha cumprido ao que se propunha, se mantendo um ícone que impulsione vendas de bonecas e tenha realizado um reposicionamento de marca com um excelente case a ser estudado nos anos a seguir.

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