Eu me lembro de ter escrito, já faz algum tempo, um artigo cujo título era Deitado sob a GE.
Foi fruto de uma experiência pessoal verdadeira e não apenas inspirada nela. Havia feito uma ressonância magnética do joelho. É lógico que é um procedimento assustador, embora fosse o joelho: entrar naquele tubo com sons que lembram reminiscências infantis de túneis escuros e assustadores, Piratas do Caribe, aranhas cabeludas…
Fiquei lá paradinho, esperando para ver o que ia acontecer. Sentindo um frio na espinha, é claro. Porém, eis que, ao olhar para cima, para a parte frontal e superior do tubo, li, escrita em letras bem grandes, a marca do equipamento: GE.
Quase que instantaneamente, o frio na espinha passou e uma enorme sensação de tranquilidade tomou conta de mim. Era como se meu pai tivesse segurado no braço do Jaime-menino para atravessar a movimentada Av. Lins de Vasconcelos, no Cambuci (SP), perto de casa.
Aquelas duas letrinhas GE levantaram o alçapão da memória: eu vi minha irmã feliz com o secador de cabelos, minha mãe cantarolando e passando o ferro numa tábua de roupas, vi minha primeira geladeira na cozinha. Tudo isso com aquela mesma marca. E, há pouco tempo, me lembro também, subindo a escada de um avião, de ter visto GE estampada na turbina.
Acreditem: essa carga de imagens que brotavam sem que eu pedisse, foi o suficiente. Em cinco minutos de exame, eu cochilei, dormi, mesmo sem terem me dado qualquer relaxante. Quando a enfermeira me acordou, a GE continuava lá. Não foi um sono de cansaço e nem de fuga, mas de um sentimento meio regressivo, como no filme Ratatouille, e como se o Jaime-menino tivesse sido ninado outra vez.
Não resisto, tenho que fazer esta ilação. Aquilo que nos faz adormecer começa lá atrás em nossas vidas, com acalantos, a presença protetora de nossa mãe, sua mão em nossa cabeça, uma penumbra que anestesia, até o momento mágico da entrega total.
E como nada acontece por acaso, há poucos dias, por outras razões, que nada têm a ver com este artigo, comprei um livro que amarrou e elucidou essa minha quase fábula. Uma verdadeira sincronia. O livro chama-se “A erótica do sono – Ensaios psicanalíticos sobre a insônia e o gozo de dormir.” (Mario Eduardo Costa Pereira – Editora Aller, 2021).
“ (Ao dormir) Deve ser possível colocar em suspensão as preocupações relativas à vida cotidiana, à gestão da dimensão mundana do existir e permitir-se simplesmente…entregar-se aos braços de Morfeu. Sim, dormir – algo que se dá sob o inquietante silêncio das estrelas – pressupõe a capacidade de entrega e de confiança.” (pag.53)
Nem todas as marcas nos aproximam desses momentos de entrega. Algumas, entretanto, são quase um acalanto em nossas vidas. São as que nos permitem adormecer em paz e sonhar, por tê-las ao nosso lado.
Talvez um bom critério para entender o afeto que nos conecta com essas marcas seja o cafuné. Aquele autêntico pousar da mão que nos protege e acaricia. “O cafuné, prática derivada do grooming – o despiolhar, existente em todas as culturas, inclusive as europeias -, consiste em uma carícia suave com as pontas dos dedos no couro cabeludo da criança como expressão de ternura para acalmá-la ou adormecê-la”. (op cit, pag 151)
Confesso que nunca havia pensado num paralelo tão claro entre o que nos embala, nos protege, nos faz dormir e as marcas que zelam pelos nossos projetos de felicidade.
Alguém poderá dizer: Jaime, você é mesmo um sonhador, afinal isso só vale para essas marcas muito poderosas, que têm muito dinheiro para investir, mas não se aplica a negócios médios e pequenos. Argumento que é uma grande bobagem, porque vale para todas as marcas e empresas que colocam o consumidor no centro de suas iniciativas.
Em primeiro lugar, as grandes já foram muito menores. E em segundo lugar: é de pequeno que se torce o pepino. Depois, não tem mais jeito.
O que as marcas fazem para deixar o consumidor tranquilo por tê-las adquirido, para dormirem em paz e com o pepino distorcido?
- Não prometer o que não são capazes de fazer.
- Ser como a Sherazade, das 1001 Noites, que todo dia tem alguma história nova para contar.
- Ter uma paciência maternal para ouvir e entender seus consumidores.
- Ser absolutamente consistentes: o que elas disserem hoje não deve contrariar, na essência, a história que contaram ontem.
- Abusar do cafuné!
Não garanto que, ao agir assim, a marca navegará num oceano azul. Mas o que eu garanto é que, sem esses cuidados, prepare-se para uma longas e cansativas noites de insônia.