Nos últimos dias acompanhei mais de uma discussão sobre a eliminação do Big Brother Brasil. A disputa era sobre votar neste cara chamado Prior, que aparentemente é um homem machista e misógino, apoiado pelos machos-hetero-top da nação, mas que dentro da casa é amigo de um dos únicos participantes negros, Babu. A outra opção do paredão era Manu, desconstruída, que segue todo o manual dos bons costumes da militância, mas que teve uma fala racista em algum momento do programa. E a discussão se desenrolava sobre se Manu é ou não racista, se apoiar Prior é de alguma forma contribuir para a vitória do Babu-homem-negro isolado num ambiente predominantemente branco, se feminismo privilegiado tá valendo ou se cancela as ricas, se Babu pode ser racista mesmo sendo negro, se é pior ser um branco racista ou negro machista e mais questões desse tipo…
Respeito muito a importância do BBB como um lugar de sinais dos tempos, conheço uma galera que estuda o programa do ponto de vista da sociologia e dos estudos da cultura. Muitas vezes sou prepotente, mas não ao ponto desses intelectuais que acham que assistir o programa é coisa de gente ignorante; pelo contrário, acho mesmo a experiência extremamente interessante. E o que escrevo aqui parte do ponto de vista de quem se interessa, da análise dos sinais que o BBB permite antever que possam decodificar os movimentos sociais e culturais nos quais estamos profundamente envolvidos (e que, por isso, nem sempre conseguimos observar à distância). Não tenho nenhum interesse em acertar o que digo sobre os participantes – se minhas descrições não batem com o que as pessoas pensam de Babu, Manu ou Prior, isso não tem nenhuma relevância. Não assisto o programa e não é sobre eles que quero falar.
Gostaria de salientar um fenômeno mais amplo, que se torna mais aparente, manifesto, a partir da existência do BBB no imaginário coletivo do brasileiro. Um paradigma que a internet e especialmente a virada da internet para o modelo da rede social não criou, mas fomentou exponencialmente: o hivemind militante. A existência de comunicação em redes, especialmente redes massivas, e ainda mais especificamente redes massivas que organizam as relações a partir de algoritmos de gestão da informação, gera uma espécie de efeito de influência vetorial centrípeta, no qual as forças tendem a se voltar para dentro de seus círculos, e não para fora, criando e fazendo a manutenção de regras específicas e estruturas discursivas próprias. Em outras palavras, os algoritmos das redes sociais criam um terreno fértil para a cristalização de ordens de discurso, bolhas nas quais micro-estruturas de poder se consolidam, como analisou Foucault, a partir de interdições, segregação e vontade de verdade.
A vontade de verdade e a segregação da loucura são os processos nos quais se legitima ou deslegitima um discurso. A partir dessas estruturas que se solidificam nas bolhas, cada vez mais desejamos que nossa palavra seja verdadeira, que seja aceita, que passe pelo crivo do coletivo, e assim se criam e se renovam os manuais discursivos, que (re)definem os termos corretos, as posturas, os autores e autoras que devemos citar para que nossa palavra seja legítima. Por outro lado, a palavra é interditada por muitos lados, a partir de tabus, rituais e estabelecimento de territórios discursivos (ou, em algumas circunstâncias, “lugares de fala”). Assim, certas afirmações, como a declaração racista de Manu, seja lá qual tenha sido, configuram verdadeiros suicídios discursivos.
Obviamente não tenho como objetivo deslegitimar discursos minoritários, negar o lugar de fala daqueles que sofrem o que outros nunca vão sofrer nem apoiar a histórica tomada da palavra pelos discursos maiores (no pior sentido de discursos que carregam consigo mais poder, ou seja, as forças homem, branco, hetero, cis etc). Quero, ao contrário, demonstrar como a criação de micro ordens discursivas não só não contribui para a construção de uma resistência ampla a estas forças, mas também reflete de lambuja a boa e velha vontade do oprimido de se tornar opressor.
Confundimos muitas vezes a luta contra o poder com uma luta por empoderamento, por criar contra-poderes. Mas criar novas estruturas de poder não parece ser o melhor modo de lutar contra as antigas, por dois simples motivos: primeiro, novas e micro estruturas se isolam. Não é possível se relacionar diretamente com os grandes vetores de força que organizam a realidade, porque as questões micro em algum momento passam a dizer respeito apenas à estrutura micro, a especificidades discursivas que qualquer pessoa fora da bolha não tem qualquer capacidade de compreender (o que acontece em outras instituições, como a universidade ou a ciência formal).
Segundo, porque numa realidade em que estes embates e troca de forças ocorrem em ambientes dominados pelos algoritmos das redes sociais, a produção de discursos é fortemente influenciada por um governo das subjetividades que é organizado por “máquinas de natureza extra pessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos,sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, enfim sistemas que não são mais imediatamente antropológicos)” (Arruda, 2016). Em resumo, não temos mais governo das forças que afetam e modelam nosso discurso, passando a fazer parte de um hivemind que funciona externamente. Ou: se todos na sua bolha decidem cancelar a Manu, a partir da lógica da bolha, isso automaticamente parece correto pra você também.
Nada disto deveria ser novidade: nós criticamos duramente os grupos de extrema direita “ignorantes” que alimentam seus próprios discursos em suas próprias bolhas. Aqui estamos falando de redes e bolhas nas quais os/as prováveis leitores/as deste texto estão inseridos/as, mas é claro que esta estrutura funciona para os diferentes níveis e camadas políticas. O atual presidente do Brasil se elegeu através da exploração desta estrutura de hivemind – o que definitivamente deveria servir de argumento suficiente para a tese que defenderei a seguir: de que a difícil decisão da eliminação do BBB ou mesmo quem vai ganhar no fim não tem absolutamente nenhuma importância num movimento de resistência ou defesa das forças minoritárias. Apesar do que você provavelmente pensou automaticamente aí agora, ao ler isso.
Compreendendo que estes dispositivos discursivos e disputas estão presos em um loop de auto-alimentação (todo discurso acusando um privilégio é produzido por alguém que goza de algum outro privilégio menor, e podemos fazer esta redução até o limite, mas chegaremos a um degrau mais baixo de privilégio que não produz nenhum discurso – ou melhor, produzir discursos sobre o privilégio é um privilégio em si) e que servem majoritariamente à adequação, a pergunta que devemos fazer é: trazer as forças minoritárias para as estruturas discursivas é mesmo a melhor forma de potencializá-las? Ou só estamos domando e hierarquizando as forças? Utilizando-as para performar (Stassun, 2014) socialmente?
Se pudermos compreender o que nos dizem Guattari e Rolnik (1996), que as minorias são da ordem do molecular, não do molar (ou seja, que atuam nos objetos da realidade afetando-os como vetores, forças, não como objetificações cristalizadas – devir-criança, devir-mulher, e não uma criança, uma mulher), poderemos chegar à dura, mas libertadora conclusão de que a defesa da força minoritária Negro não é o mesmo que a defesa do Babu. Que a disputa com a força dominadora, maior, Homem, não é a disputa com os homens; com um homem; com o Prior. Reduzir estas disputas de forças a um nível molar é retirar delas sua potência transformadora e disruptiva. Como diz Arruda (2016), “manifestações minoritárias a nível molecular são indistintas e sua redução a identidades é um tanto quanto reacionária mesmo quando utilizadas por grupos progressistas”.
A questão é que os verdadeiros sinais que o Big Brother Brasil emite sobre a realidade e a sociedade não vão ser observados nas pessoas que estão dentro da casa. Falar sobre a força do feminismo utilizando como exemplo o que acontece com as mulheres no programa é quase inocente. Pensar em igualdade social definindo quem é o participante mais necessitado é um absurdo. Nada ali é real, estamos olhando para um conjunto de signos. Mas o que nós sentimos e dizemos e fazemos olhando para estes signos diz muito, isto sim é radicalmente concreto. Em resumo: o BBB, numa perspectiva mais ampla, meta-narrativa, é sobre você. The joke is on you. De modo que podemos e devemos continuar torcendo para Babu, Manu ou Prior, e inclusive discutir por isso, assim como discutimos quantos títulos tem o Flamengo na mesa do bar. Mas é sempre bom nesse tipo de discussão lembrar que seus argumentos, por mais lógicos e sensatos que sejam, são baseados e definidos pelo não pouco importante fato de que você é flamenguista.
Referências:
http://www.portalintercom.org.br/anais/sul2016/resumos/R50-1232-1.pdf