Conhecido por defender a amamentação sobre livre demanda, colo à vontade e carinho sem limites, o pediatra espanhol Carlos González, 57, esteve no Brasil recentemente para o lançamento do seu mais novo livro Meu filho não come, da Editora Timo (224 págs.). Além de provocativas, as teorias heterodoxas de Gozález costumam gerar bastante polêmicas. Não obstante a isso, muitas de suas recomendações têm conquistado adeptos pelo mundo. Fato é que, no seu modo de pensar, levar uma vida mais “normal” parece ser o melhor caminho para pais e filhos. Reproduzo aqui no UoD, com autorização do jornalista responsável, a conversa que tivemos com o Dr. Gozález, originalmente publicada na Revista AM.
Já há alguns anos têm-se notado que os pais parecem ter embarcado na ideia de que paternidade/maternidade deve ser uma instituição perfeita, pautada por regras e moldada a padrões pré-estabelecidos. As pessoas (pais) estão mais chatas? Por que parecem querer sempre escolher o topo dos extremos (alimentação perfeita, educação perfeita, horários perfeitos), enquanto a vida, como sabemos, não é de tudo tão perfeita assim?
Isso é um mistério. Suponho que todos os casais querem ser bons pais. Por obra do destino, muitas vezes, a informação (aquela que forma valores) é equivocada, e as circunstâncias, adversas. Nunca antes na história da humanidade havia tido tanta obesidade infantil. Os pais não medem esforços por manter a alimentação perfeita de seus filhos, mas o fato é que muitas crianças estão se alimentando mal, com comida de má qualidade e principalmente em quantidade excessiva.
Uma das maiores labutas diárias dos pais, principalmente os de primeira viagem, é controlar a todo o custo a alimentação dos filhos, tanto na qualidade quanto na quantidade. Por que você classifica como erro estipular horários, quantidades e variedades (de maneira ortodoxa) na alimentação infantil?
Estipular horários para que a criança se alimente é um erro, por dois motivos. O primeiro deles se deve ao fato de que nunca se sabe exatamente quanto uma criança deve comer. Pesquisas mostram que algumas crianças sadias e normais comem mais que o dobro, às vezes até três vezes mais, que crianças sadias e normais de mesma idade. As quantidades que recomendam os médicos ou livros estão calculadas de modo que, à criança que mais come lhe sobre um pouco. Muitas comem a metade ou menos de um terço do que geralmente é recomendado. O segundo motivo que defendo sobre o erro de estipular horários precisos para que a criança coma é que ela precisa conservar sua capacidade de decidir sobre sua alimentação (e não digo “aprender a decidir”, mas sim “conservar sua capacidade”, porque ela já sabe decidir desde que nasceu, não é à toa que sabe quando tomar o peito). Durante toda a vida vamos ter que decidir o que vamos comer. Se uma criança se vê constantemente “pisoteada”, dia pós dia, sua capacidade de decidir, na próxima fase, ou seja, na adolescência, não saberá tomar suas próprias decisões. Certamente irá procurar alguém que lhe diga o que há para comer. O problema é que esse alguém certamente não será sua mãe e tampouco o médico. Será a televisão, a publicidade, a dieta da moda, o último guru com a receita mais absurda… A responsabilidade dos pais é oferecer a seus filhos uma comida saudável. Mas os filhos têm o direito de escolher, em meio a essa comida ideal, o que exatamente querem comer, quando comer e o quanto comer.
Os hábitos alimentares dos pais influenciam no desenvolvimento infantil? Crianças devem ser tratadas como adultos no que diz respeito à alimentação?
Os hábitos alimentares dos adultos influenciam muito, e nesse sentido é muito importante que os pais assumam a responsabilidade de comer de maneira saudável, dando o bom exemplo. É importante lembrar que as crianças devem ser tratadas como criança, ou seja, com mais respeito do que com um adulto. Ninguém obriga um trabalhador de uma fábrica a comer, nem os soldados no quartel, nem os encarcerados na prisão. Sendo assim, nós também não devemos obrigar as crianças a comer.
“Meu filho não come”. Você já deve ter respondido o porquê dessa afirmação milhares de vezes. Mas, e quando ele não come o que deve comer? Aliás, há algo que ele deve comer, obrigatoriamente? E se ele só quer comer guloseimas?
Não existe nada que uma criança deve comer de maneira obrigada. É importante salientar que uma criança não comerá guloseimas se os pais não as comprar. Por isso eu repito, a responsabilidade de oferecer uma dieta saudável é dos pais. Infelizmente, muitas vezes, os pais oferecem alimentos não saudáveis às crianças como estratégia para fazê-las comer. Quer um exemplo? Adicionam açúcar na fruta ou no leite para que a criança tome. Absurdo! Se a tática for comer porcarias, é melhor que não coma nada.
Como você avalia a enxurrada de comidas industrializadas destinadas às crianças? Papinhas, sucos, comidas light, enriquecidas etc. infestam as prateleiras. É correto criar um cardápio diferenciado em casa quando se tem pequenos à mesa?
Não há que se fazer um menu especial para as crianças, nem mesmo para os bebês. Todos os membros da família podem comer a mesma coisa. O importante é que se criem bons hábitos alimentares. Em nada adianta o bebê comer verdura sem sal a partir dos seis ou sete meses se durante os próximos 30 anos se empanturrar de refrigerantes, doces e alimentos industrializados repletos de açúcar, sal e gordura. O que se tem que fazer é manter uma dieta saudável durante toda a vida.
Qual sua fórmula de hábito alimentar saudável?
Algumas dicas, não perfeitas, mas suficientemente equilibradas poderia ser: beber somente água (que é a única bebida saudável, lembrando que o leite não é bebida, e sim comida); preferir sempre uma fruta como sobremesa; preparar a alimentação com pouco sal; optar pela carne grelada; preferir os molhos caseiros (no ketchup, por exemplo, cerca de 25% do volume é açúcar); diminuir as batatas fritas e aumentar as saladas, verduras e legumes… Se os pais se alimentam de maneira saudável, os filhos irão comer de maneira saudável enquanto viverem.
Não obstante a alimentação, os pais sofrem também com os “maus comportamentos”. “Birras” e choros intermináveis são demonizadas. Socorrer ou ignorar? Há um meio termo? O que os pais devem fazer quando o choro parece não cessar nunca?
Uma criança jamais deve ser ignorada quando chora. Não há meio termo. Não amo meu filho 50%, não o protejo em apenas 50%, não o consolo somente em 50%. Sou médico. Passei muitas noites de minha vida em um hospital, atendendo “desconhecidos” que choravam. Vinham às três da madrugada se queixando de febre, dores, náuseas… A todos procurei atender de maneira rápida, ouvindo-os com respeito, ou seja, a todos tentei ajudar da melhor maneira possível. É o que nós médicos fazemos, é o nosso ofício. Jamais devemos dizer: “Vai esperar meia hora para que aprenda que não pode vir às três da madrugada incomodar no hospital…”. Se ajudamos com amor a qualquer desconhecido que recorrem a nós, como iremos ignorar nossos próprios filhos?
Parece que você é contra os manuais sobre cuidado e educação dos filhos, no entanto, é também é autor de diversos livros que apontam caminhos para melhor orientar na criação das crianças. Há verdades absolutas nesse sentido? Tudo pode ser generalizado ou alguém está certo?
Nossos avós criaram (e muito bem) seus filhos sem livros e manuais. Exatamente por haver tantos livros sobre crianças e educação infantil, e serem tão ruins, a meu ver, é que decidi escrever os meus. Assim, os pais que queiram ler sobre o tema, poderão encontrar uma alternativa diferente do que há por aí. Simplesmente poderão eleger o que consideram melhor. E afirmo uma coisa: há verdades que devem ser aplicadas na formação das crianças. O problema é que não chegamos a um consenso sobre quais são essas verdades. Estou convicto de que os pais podem demonstrar a seus filhos o quanto os ama, tomá-los nos braços, tratá-los com carinho e respeito, compartilhar a cama com eles, consolá-los sem medida quando choram. Os pais não têm direito de bater, gritar, ameaçar, castigar, insultar ou ridicularizar seus filhos. Devem no mínimo tratá-los com respeito, como tratariam qualquer outra pessoa.
Um pediatra controverso
Algumas ideias de Carlos González entram em conflito com diretrizes sustentadas por diversos órgãos ligados à pediatria, entre eles a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Cama compartilhada e colo sem limites, por exemplo, são algumas delas. Quando a questão toca nos horários da alimentação e quantidades a serem dadas, o Dr. Hélcio de Sousa Maranhão, professor do Departamento de Pediatria da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (RN), especialista em Gastroenterologia e Nutrologia Pediátricas e ligado à SBP, é enfático: “A criança precisa certamente de se alimentar em horários regulares, fazer uso de uma alimentação variada, incluindo todos os componentes necessários para o seu crescimento e desenvolvimento, o que demanda um prato diverso, colorido, assim como em quantidades adequadas. Portanto, o equilíbrio desses fatores deve proporcionar uma alimentação saudável e sem traumas”. No tocante à qualidade dos alimentos, ambos os especialistas convergem. Na mesma linha de González, Maranhão alerta que “os alimentos industrializados não devem estar presentes na alimentação diária da criança como um substituto de produtos mais caseiros e domésticos”. Segundo ele, estes últimos devem ser priorizados. Apesar de toda vigilância quanto à segurança alimentar dos órgãos competentes, a composição dos produtos industrializados diferem em muito daqueles de origem doméstica, por serem adicionados conservantes, espessantes, aromatizantes e até “substâncias” que melhoram o sabor e a aparência dos alimentos, sem falar que, muitas vezes, não são equilibrados sob o ponto de vista da variabilidade e concentração de nutrientes. “A criança que come em casa com os pais pode fazer uso do cardápio da família, desde que alimentação preserve as boas qualidades nutricionais necessárias a todo e qualquer indivíduo”, conclui.
Perfil
IDADE
57 anos
NACIONALIDADE
Espanhol (Nascido em Zaragoza)
ESTADO CIVIL
Casado há mais de três décadas com uma médica, González tem três filhos. O mais velho é roteirista, a do meio engenheira de computação e a caçula colega de profissão.
CURRÍCULO
Formado em Medicina pela Universidade Autônoma de Barcelona (1983); especialização em pediatria no Hospital de Sant Joan de Déu (1987). Autor de diversos livros, entre eles Meu filho não come, recém lançado no Brasil pela Editora Timo.