Em Joinville, Santa Catarina, acontece anualmente um evento chamado EPPA, que é promovido por acadêmicos de publicidade. Esse evento busca trazer sempre um panorama geral de alguma temática que está em alta no mundo da comunicação e dos negócios.
O tema deste ano, particularmente, me chamou a atenção: “o (des)comportamento do consumidor”. Essa temática, a princípio, pode soar estranha. Descomportamento não é uma palavra que existe no dicionário, apesar de ser possível atribuir um significado semântico à ela.
Antes de falar sobre o que é o descomportamento do consumidor, é importante contextualizar a evolução do marketing e, consequentemente, da forma de pensar o consumidor.
Use os links abaixo se quiser navegar para algum tópico específico:
Marketing 1.0, 2.0, 3.0 e 4.0
Philip Kotler, considerado o pai do marketing, descreve três grandes momentos do marketing, sendo um a evolução natural do outro.
A era dos produtos (Marketing 1.0)
Ocorreu quando as primeiras empresas ainda estavam se estabelecendo, há muito tempo atrás, e quase não havia concorrência no mercado. Sem muita variedade de escolha, os clientes eram obrigados a aceitar as poucas opções existentes e, portanto, se adaptar a eles.
Se a Ford, que foi a primeira montadora em grande escala de automóveis, produzisse apenas carros na cor preta, os consumidores que queriam um carro teriam de adquirir carros na cor preta, mesmo que preferissem, por exemplo, a cor vermelha.
A escolha se resumia a “ter ou não ter”, o que tirava totalmente o poder de quem comprava.
A era da informação (Marketing 2.0)
Se fosse resumir esse período em uma frase, essa frase seria o provérbio “o cliente sempre tem razão”. Nessa era, o consumidor começou a ser empoderado graças ao aumento da concorrência e à maior exigência quanto aos produtos ofertados.
Nessa época, também, a internet começou a ganhar corpo e ficou muito mais fácil fazer comparações entre produtos, permitindo que empresas menores tenham espaço usando meios alternativos de divulgação, como e-commerces e redes sociais..
Aqui, se a Ford quiser vender apenas carros pretos enquanto os consumidores pedem por carros vermelhos, ela tem duas opções:
- Atender à demanda e começar a produzir carros na cor vermelha; ou
- Perder o cliente para outra montadoras (como Chevrolet, Volkswagen, Fiat, etc.), que produz carros na cor vermelha.
Com o empoderamento do consumidor e aumento da concorrência, veio também a possibilidade de comparar produtos e, assim, escolher o que apresentar o melhor custo-benefício.
A era dos princípios (Marketing 3.0 e 4.0)
Na era dos princípios, que vivemos agora, a grande mudança acontece na mente do consumidor. É a esse momento que o EPPA, evento que citei anteriormente, se refere quando fala em descomportamento do consumidor: o consumidor está cada mais consciente e informado sobre o que ele está consumindo.
Veganismo, consciência ambientalista, movimentos contra trabalho escravo, entre outros expoentes do tempo em que vivemos, estão ganhando força graças a fatores como:
- Maior acesso à informação;
- Popularização das redes sociais;
- Empoderamento do cliente;
- Consciência social e ambiental.
O Marketing 3.0 e 4.0 possuem conceitos bastante similares, ao ponto de alguns críticos dizerem que ainda não chegamos no Marketing 4.0. No último livro lançado por Kotler, ele cita 3 efeitos recentes que justificariam essa nova “era do marketing”:
- Efeito Google: com a evolução constante do buscador online, as marcas se viram obrigadas a criar conteúdo para a internet e prover informações pertinentes para ajudar o consumidores na tomada de decisões, já que todos “dão um Google” antes de decidir o que comprar. Hoje, o Google é tão importante e onipresente no processo de decisão que existem profissionais especializados em otimizar sites para motores de busca (profissionais de SEO);
- Efeito redes sociais: consumidores cada vez mais imediatistas criaram uma exigência por atendimento online cada vez mais rápido. Nesse sentido, as redes sociais têm um lugar especial, pois boa parte dos usuários está nela (130 milhões de brasileiros – 62% da população -, utiliza o Facebook) e praticamente todas elas permitem algum tipo de interação em tempo real. Não é à toa que as grandes empresas já estão investindo milhares de reais em chatbots e atendimento online automatizado, pois lidar com esse volume de gente online é humanamente impossível (ou caro);
- Efeito serviços: como a internet e o acesso aos dispositivos móveis está cada vez mais popularizado, abriu-se um leque de possibilidades de negócios. Esses negócios não dependem dos meios tradicionais (loja física, atendimento presencial, etc.) para existir, pois eles tiram proveito da mobilidade e do acesso à internet para oferecer seus serviços. Alguns exemplos de negócios 100% online são:
- Uber, que não conta com pontos de táxi físicos, apenas um aplicativo;
- Amazon, que não conta com loja física, apenas um e-commerce;
- Udemy, que vende cursos online sem precisar de uma universidade física;
- NuBank, que oferece serviços bancários sem ter uma agência sequer.
A era da disrupção
Em um outro artigo, de 2017, falamos sobre a era da disrupção e que mudanças ela deveria trazer para as empresas e agências de publicidade.
Hoje, é possível notar alguns movimentos interessantes para se adequar às mudanças de comportamento, mas, mesmo assim, muito do que foi falado há dois anos atrás continua bastante atual.
Muito além dos exemplos que já estamos cansados de ouvir, como Apple, Netflix, Uber, AirBnB ou [insira aqui a empresa unicórnio do momento], os consumidores continuam apostando em empresas inovadoras, comprando suas ideias e a experiência que elas oferecem.
Para mim, o exemplo mais claro no momento é a Dobra, que inclusive palestrará no EPPA deste ano.
O caso da Dobra
A Dobra é uma empresa conhecida por suas carteiras de papel feitas à mão com estampas descoladas e com referências a elementos da cultura pop, como séries, filmes, videogames, entre outros.
O que é tão impressionante sobre essa empresa é que ela cobra cerca de R$49,90 por uma carteira de papel. Isso mesmo: uma carteira de papel que custa quase o mesmo que uma carteira de couro sintético, um material muito mais caro e resistente!
Como eles fazem isso? Basicamente, eles vendem uma ideia. Toda a comunicação e conceito da marca são muito bem trabalhados:
- O apelo ao diferencial de carteiras finas que não incomodam e não pesam no bolso;
- A linguagem mais jovial, descolada e cheia de internetês;
- O mascote da marca (um pug, chamado Batman) que é usado em tudo: remetente dos e-mails marketing, pop-up de saída e até mesmo SAC;
- As estampas divertidas (afinal, uma carteira de Game of Thrones é muito mais legal do que aquele marrom sem vida das carteiras de couro).
O pop-up de saída do site da Dobra é um bom exemplo do tipo de linguagem que eles usam.
Além disso, a Dobra também oferece uma experiência de compra diferente dos outros e-commerces. Ao comprar uma carteira da Dobra, você recebe uma mensagem carinhosa em um post-it que vem na sua carteira.
Essa mensagem é escrita à mão e vem com seu nome escrito, o que a torna mais especial. Além disso, o envelope que vem com a carteira vira um cofrinho, que você mesmo monta só com dobraduras, o que torna a experiência muito mais completa..
A Dobra pensou em todo o processo de compra do seu público-alvo: desde a comunicação até a compra e, por incrível que pareça, até mesmo no descarte do produto. A empresa oferece um desconto em outro produto para quem enviar a carteira velha de volta para eles reciclarem.
Talvez você não esteja convencido de que isso tudo valha os R$49,90, mas tem muita gente que acredita que vale. Se você jogar #querodobra no Instagram, vai ver que há um número considerável de clientes da marca que fotografam e fazem um unboxing quando recebem o produto.
São essas pessoas que compram carteiras de papel muito mais pela ideia que ela representa do que pelo benefício ou pela funcionalidade. Um público que, quando tem poder aquisitivo para isso e está disposto a pagar, prefere comprar produtos que representem melhor seus valores e princípios em detrimento de opções mais baratas e funcionais.
E o que é mais me impressiona na Dobra é que ela mesma te ensina a fazer as carteiras por conta própria, oferecendo o moldes e vídeos tutoriais para você fazer em casa. Isso, por uma ótica padrão de negócios, parece contra-intuitivo, já que pode fazer você vender menos. Só que para a Dobra, isso é uma excelente forma de reafirmar seu posicionamento e vender uma ideia.
Mas, se os clientes estão menos sensíveis a preço, o que eles de fato valorizam?
Valorizando boas ideias
A Dobra é um excelente exemplo de como vender uma ideia. Com gestos simples (como um post-it agradecendo a compra), eles oferecem uma experiência mais memorável do que aquela caixa de papelão com a nota fiscal que você costuma receber quando compra em outros e-commerces.
Entretanto, a valorização das ideias não fica só em empresas que vendem carteiras de papel: ela também afeta o mercado de ações. A Tesla talvez seja o melhor exemplo disso.
A montadora mais valiosa do mundo dá prejuízo
Já é quase consenso que o futuro será dos carros elétricos. Os estudos sobre o quanto os carros movidos à gasolina poluem o meio ambiente já são conhecidos por uma parcela grande da população.
Nesse cenário, os carros elétricos despontam como a solução no combate à poluição, ao aquecimento global, à falta de petróleo no futuro e outros problemas em relação à mobilidade. A discussão se eles de fato são a melhor solução não é pertinente para este artigo, mas recomendo fortemente este podcast sobre o tema, caso você se interesse.
Essa visão de futuro de que todos carros serão elétricos (o Brasil até já tem uma lei para proibir carros movidos à gasolina ou à diesel no futuro) fez com que os investidores olhassem com bons olhos para a Tesla, que hoje se mostra a montadora mais avançada na produção de veículos elétricos.
O curioso é que mesmo que a quantidade de veículos vendidos anualmente pela Tesla não chegue nem perto da quantidade comercializada por gigantes como a General Motors, a empresa se tornou a montadora mais valiosa do mundo em 2017 e virou a queridinha dos investidores.
Para efeitos de comparação, a Tesla fabricou menos de 100 mil veículos em 2016, frente aos mais de 10 milhões da GM. Guilherme Costa, do site Razão Automóvel, pontuou:
“De um lado temos a Ford. A marca liderada por Mark Fields vendeu 6,7 milhões de automóveis em 2016 e fechou o ano com um lucro de 26 mil milhões de euros. Do outro lado temos a Tesla. A marca fundada por Elon Musk vendeu apenas 80.000 automóveis em 2016 e apresentou um prejuízo de 2,3 mil milhões de euros.”
Isso é o quanto as pessoas valorizam e apostam seu dinheiro em ideias que eles acreditam de verdade.
Valorizando experiências
O exemplo da Dobra, por si só, já mostra o quanto valorizamos os pequenos incrementos na nossa experiência de compra. Inclusive, um estudo da consultoria Capgemini, realizado em 2017, mostrou que existe uma correlação positiva entre investir mais na satisfação do cliente e disposição deles em gastar mais.
Nesse estudo, utilizando a metodologia NPS, a consultoria concluiu que quanto mais a empresa se preocupa em oferecer para seus consumidores uma experiência memorável e agradável de compra, mais ela pode cobrar por isso sem sofrer perda de resultados.
A Starbucks é um exemplo de como uma cafeteria pode ir além com algumas ações simples e, consequentemente, cobrar mais por isso. A começar pela entrada, não é incomum que o segurança do estabelecimento abra a porta e lhe deseje “bom dia”, o que por si só já é um tratamento melhor do que o de muitos estabelecimentos.
Em seguida, você é atendido por funcionários educados, que perguntam o seu nome (em vez de te tratar por um número ou senha) e você recebe sua bebida nos famosos copos com seu nome escrito à mão.
Outro fator importante é a ambientação aconchegante da Starbucks, a disponibilização do espaço e wi-fi grátis para você ficar o tempo que quiser conversando, trabalhando ou simplesmente passando o tempo, sem sofrer pressão para sair e desocupar o lugar.
A questão aqui é que, racionalmente falando, o café da Starbucks pode ser caro quando comparado a outras cafeterias. Pelo mesmo preço, você pode conseguir uma bebida melhor em outros lugares. Contudo, toda a experiência de compra e o sentimento atrelado à ela fazem o preço da Starbucks pareça justo.
Afinal, você não pagou só pelo café. Você pagou para ser bem atendido e ter um lugar calmo e acolhedor para apreciar sua bebida.
E o que as empresas estão fazendo sobre isso?
“75% das empresas se dizem focadas no cliente. 30% dos consumidores concordam com isso”.
Algumas marcas, como as dos exemplos citados acima, então se antecipando às tendências e fazendo incrementos e investimentos em inovação e experiência de compra. Outras só acreditam que estão se antecipando às tendências e provavelmente enfrentarão dificuldades no futuro.
O relatório da Capgemini citado acima também revelou algo bastante interessante. Enquanto 75% das empresas acreditam estar focadas no cliente, apenas 30% dos consumidores dizem que elas realmente estão alinhadas às suas necessidades.
Isso pode ser resultado da chamada miopia de marketing, em que as empresas têm uma visão distorcida de si mesmas e do mercado, o que ocasiona decisões ruins e, consequentemente, queda nos resultados.
A miopia é complicada, pois o primeiro passo para resolver um problema é reconhecê-lo, mas com uma visão míope até isso se torna complicado.
Lembra dos conceitos de Marketing 1.0, 2.0 e 3.0 citados anteriormente? Se levarmos em conta essa pesquisa, do ponto de vista dos consumidores, a maior parte das empresas parece que ainda vive na época de Henry Ford e se mostram bem atrasadas em relação ao que o consumidor realmente deseja.
Você pode perceber isso ao verificar que muitas organizações sequer possuem um sistema CRM eficiente que ajude a formar uma base de dados sobre os clientes delas, o que é curioso, já que a era da informação já começou há alguns anos.
Aliás, falando em dados, vale lembrar que o Big Data já é realidade há bastante tempo e que quase todos os profissionais de marketing já devem saber disso. O problema é que muitos sabem, mas poucos aplicam o conceito na prática.
O que quero dizer com isso tudo é que já existem estudos, metodologias, técnicas, ferramentas e outras práticas para ajudar a aplicar os conceitos abordados neste artigo.
Existe até um canvas de jornada do cliente para identificar os pontos de contato com o seu cliente e que te ajuda a ter insights sobre como melhorar a experiência de compra.
Só que mesmo com tudo isso, poucos são os players que parecem estar se movimentando para se adequar ao descomportamento do consumidor. Isso abre espaço para empresas inovadoras e ágeis roubarem mercado das organizações gigantes já estabelecidas.
Acima de tudo, o que parece estar faltando às empresas é o básico: aplicar os conceitos que já conhecemos. Por isso, o tema do EPPA que citei durante todo o artigo, se mostra tão atual, ainda que tão básico.
Precisamos entender o comportamento (ou descomportamento) do consumidor. O comportamento real, não o que as empresas acreditam ser real.
Referências e artigos complementares
O que é o Marketing 1.0, 2.0, 3.0? (Media Response)
Marketing 4.0: do Tradicional ao Digital, passo a passo (Nova Escola de Marketing)
Tesla se torna fabricante de veículos mais valiosa dos EUA (Exame)
A Tesla perde dinheiro, a Ford dá lucro. Qual destas marcas é que vale mais? (Razão Automóvel)
Clientes estão dispostos a pagar mais por experiência de compra (Mundo Marketing)