A cada nova tecnologia, é natural o questionamento sobre a existência daquela imediatamente anterior. “A internet vai acabar com os livros”, “A internet vai acabar com a televisão”, e por aí vamos com os prenúncios do apocalipse.
Dois pontos, porém, me chamam muito a atenção nesta discussão: o primeiro, a não dissociação entre conteúdo, distribuição e dispositivo, o que gera “altas confusões” (#sessãodatarde_feelings) no questionamento sobre a continuidade ou não de um ou outro. O segundo é a tendência em encarar estes momentos como um ato de substituição (desaparece x porque apareceu y) e não sua adequação ou transformação.
A internet nunca vai matar o livro, mesmo que ele passe a “se chamar” e-book ou blog post ; da mesma forma, nunca vai matar a televisão, ainda que ela passe a “se chamar” YouTube, Netflix ou BTV Box. Para compreender esta interpretação, é necessário separar a entrega de valor de cada mídia em função do formato de sua transmissão, autonomia/controle do espectador, modelo de monetização, dispositivo e forma de consumo.
Fazendo um recorte para o conteúdo audiovisual, há que se considerar que a TV a cabo está fadada ao desaparecimento; se uma NET, Sky e afins fundamentarem sua existência na infraestrutura física de cabeamento nos postes, terão o mesmo fim. É possível que “comerciais interruptivos de 30 segundos” também sigam por este caminho.
Isto não significa, porém, o fim das empresas agregadoras de conteúdo.
O conteúdo audiovisual será transmitido via internet (infraestrutura, formato de distribuição), poderá ser sob-demanda ou linear, ao vivo ou gravado, isto é indiferente, existe espaço para todos estes formatos de programação. Surgem novos formatos de monetização, onde, talvez um dia, eu não precise pagar pela GNT sendo que só assisto Discovery Science e minhas cachorras Cartoon Network (e outras pessoas preferem outras coisas, até TV Senado, não estou aqui denegrindo nenhum conteúdo).
O próprio App TV, da Apple, que se tornará onipresente nos Macs a partir do próximo sistema operacional (MacOS Catalina), substituindo o iTunes (amém!), é um exemplo de “nova TV a cabo” ou, melhor dizendo, novo formato de agregador de conteúdo de diferentes produtores. Olha só como se posicionam:
Se não pode competir com eles, agregue-os e tente tirar alguns centavos de cada dólar que seus concorrentes fizerem.
Movimento interessante justamente quando o que vemos é a descentralização dos produtores, criando plataformas proprietárias (além da Netflix, Amazon Prime, HBO Go, Fox Premium, Disney+, e por aí vamos…).
A Netflix não irá matar o cinema (são 3.356 salas no país, segundo a Ancine, recorde alcançado no final de 2018, atingindo 161 milhões de espectadores), mas sim compete pelo tempo de entretenimento; e incorpora outro elemento pouco explicitamente discutido: o formato social de consumo de conteúdo.
E aí pensamos no formato social de consumo. O consumo de conteúdos são experiências, trazem aprendizado, entretenimento, conexão… e tais experiências podem ser individuais ou coletivas. Alguns conteúdos e formatos de exibição pendem mais para um lado, outros mais para outro, mas a compreensão de como se dá o consumo daquele conteúdo me parece fundamental para encerrar comparações dicotômicas infundadas sobre meios e dispositivos.
O grande ‘tesão’ do cinema não é o filme em si; tampouco o som ultra-mega-blaster-surround ou a cadeira que se mexe (embora a qualidade e inovatividade do espaço colabore); a experiência de um filme no cinema é o “ohhhh” de todos da sala em uma cena do filme Fragmentado, ou as risadas puxadas ao longo da platéia quando o Thor aparece em sua nova forma em Vingadores: Ultimato (#no_spoilers). Não se vai ao cinema para assistir a um filme sozinho (e isto não quer dizer sua companhia direta).
Da mesma forma, é “ok” assistir a um jogo de futebol no seu celular enquanto está no transporte público a caminho de casa, mas o poder do êxtase coletivo no momento do gol incorpora componentes emocionais adicionais à história que está sendo consumida. O poder do torcer junto, do se emocionar junto é o que se vende em uma tela coletiva.
Por exemplo, o Tinder, em 2016, quis que seus usuários tivessem seus amigos como influenciadores das deslizadas para direita ou esquerda.
O Twitch, canais e transmissões ao vivo para acompanhar games no YouTube ou ainda o Twitter durante algum evento de relevância, são exemplos de tentativas para coletivizar uma experiência virtualizada. Assim como o Netflix Party, um plugin para Chrome que permite com que duas pessoas sincronizem (e conversem sobre) conteúdos na Netflix, ou seja, assistimos juntos, mas separados.
Como incorporar a reação coletiva enquanto o consumo é feito de forma individualizada? De fato, um desafio interessante.
Assim, enquanto se declara a morte do rei da TV, é necessário entender o que, exatamente, se quer dizer com a palavra “TV”?
- Se for uma forma de distribuição de conteúdo por ar ou cabo.
- Se uma forma de conteúdo linear, sem in(ter)ferência do espectador.
- Se um modelo de monetização com comerciais interruptivos enquanto se assiste algo.
- Se um aparelho com uma tela maior (um tabletzão ou um cineminha?).
- Se uma experiência individual ou coletiva?
Ou tudo isso junto e misturado.