Todo mundo que nasceu nos anos 80 e 90 com certeza se deparou em algum momento com o cowboy americano do comercial do cigarro Hollywood. Não importava se você tivesse 4, 12 ou 40 anos, o comercial tava lá na TV e as pessoas até fumavam em avião. Aquela figura máscula era o suprassumo do macho alfa: trabalho manual, visual lumberjack, arquétipo do explorador e muita aventura envolvida. Acompanhando esse homem, lá estava o cigarrão Hollywood, completando com fumaça essa estética que ficou diretamente linkada ao homem hétero americano.
Obviamente essa estética não foi criada do zero, pois se tratava de uma leitura do homem sulista americano, que trabalhava no campo, republicano e “super alfa”.
O tempo passou e a contemporaneidade nos trouxe contextos novos, ressignificando alguns signos que, anteriormente pertenciam ao espectro do opressor. É assim que iniciamos essa linha de raciocínio de desconstrução estética e comportamental dessa figura super masculina.
Talvez a primeira vez que esse perfil “macho alfa” passou por uma “ameaça” tenha sido com o clássico “The Brokeback Mountain” (2005). Caso você seja Gen. Z e não tenha visto, o filme retrata a história de dois companheiros de trabalho que se apaixonam em uma montanha nos anos 60. Ver a figura estética do cowboy americano em dois homens gays foi bem disruptivo para o momento e trouxe à tona: vai ter LGBT nas montanhas também.
Joanne, Gaga e o chapéu rosa millenial
Depois que Gaga lançou o seu quarto álbum, Joanne, o mundo meio que começou a vê-la de outra forma. Desde seu disco de estreia, o The Fame (2009), Gaga foi “eleganza extravaganza” e, de certa forma, sempre foi honesta ao que se propunha no momento. Joanne (2015) veio com “Perfect Ilusion”, que trouxe uma estética simplista e maximizou sua potencialidade vocal. Mas foi com “Million Reasons” que o spoiler veio: não vai ter pop. Todos nós já sabíamos da potência da música country americana, mas por aqui e por todas as gays desse mundo, ainda faltava o refrão chiclete.
Aos poucos fomos entendendo melhor a “Gaga que gosta de ousar” e assimilando melhor aquela estética e sonoridade que, ao mesmo tempo que lembrava algo levemente semelhante ao sertanejo, era novo, hype e marcado pela voz fabulosa da cantora. O country ali era a conexão da Gaga com a Stefani, com a família e com um propósito muito mais ligado com a verdade.
É interessante notar que possivelmente a Gaga acessou o country – uma sonoridade mais tradicional – para se conectar com sua ancestralidade, mas criou uma outra narrativa em cima dela.
In Malibu
Outro nome que está na lista oficial da ressignificação do country americano é a própria Miley Cyrus. A dona e proprietária da empresa Hannah Montana, lançou o single “Malibu” em 2017 e surpreendeu todo mundo. Filha de Billy Ray Cyrus – que é praticamente o Xororó dos Estados Unidos – havia em seu passado recente hits como “We Can´t Stop” e “Wrecking Ball” que deu o que falar, além das milhares aparições e pronunciamentos polêmicos de Miley no período. De repente, Miley aparece quase que uma “paciente de uma rehab” com Malibu. A verdade é que essa fase serviu para que a cantora passasse pelo mesmo processo de Gaga, parece que depois de um tempo de “over exposion” as duas precisaram de um período de reconexão – ou é puro storytelling? Nunca saberemos.
A verdade é que Malibu virou hit e ajudou a impulsionar a linguagem do country pra dentro do pop, ou seja, levou o estilo musical para outra dimensão.
O Grammy é do country
Não foi surpresa pra ninguém quando esse ano no Grammy, Kacey Musgraves levou o principal prêmio da noite: o de álbum do ano. Bem, na verdade foi surpresa, porque ela concorria com H.E.R., Cardie B, Drake, Post Malone e Janelle Monaè, ou seja, a “menina do country”, pouco conhecida do mundo, levou o maior prêmio da noite. Kacey é famosa por “botar o terror” no country. Em suas músicas ela fala de feminismo, homossexualidade e maconha, ou seja, a família tradicional sulista americana não vê isso com bons olhos. Uma de suas bandeiras com a causa LGBTQ+ é a de apoiar que cantorxs do movimento ocupem os espaços que quiserem, inclusive no country.
O country é rap? O rap é country?
Essa timeline do pop, que ajudou a reverter essa imagem do homem hétero americano do comercial de cigarro foi para chegar até aqui: Lil Nas X. Talvez você não conheça por nome, mas com certeza se começar a ouvir o seu hit “Old Town Road” vai se lembrar rapidamente.
Mais 244 mm de views no YouTube (até hoje, 01/08), milhares de plays nas plataformas de streaming e o recorde de single com mais tempo em primeiro lugar no Top 100 da Billboard, desbancando nomes como os de Mariah Carey e Luis Fomsi. Tá bom pra você? Lil Nas X é negro, gay e seu som mistura o country – típico de Atlanta, Geórgia – com o rap, o som que ele se identifica culturalmente. Esse mashup musical, de estilos e de referências fez com o garoto de apenas 20 anos criasse uma linguagem muito particular e que normatiza a mistura de sons que geralmente se encontram em partes diferentes do espectro sócio político americano.
É claro que o universo tradicional do country americano – leia-se branco, hétero, cis, classe média e eleitor do Trump – não gostou muito da história e até a gravadora de Lil tirou o som dele do catálogo do estilo musical americano e o manteve apenas no rap e urban.
Lil tinha 5 dólares no bolso no final de 2018, quando subiu “Old Town Road” no SoundCloud. O que ele não esperava – ou esperava – era que a música viralizou no Tik Tok no verão americano por conta de um desafio chamado “Yeehaw Challenge” – uma corrente com a ideia de mostrar os usuários se transformando em cowboys – e já nessa época a música pegou o lugar 83 nas paradas americanas. Lil percebeu que a música tinha potencial e pediu compartilhamentos no Twitter até a música chegasse em Billy Ray Cyrus, pois ele estava focado nesse feat. E não é que deu certo? O famoso pai de Miley ouviu o som e topou gravar a música e fazer o clipe, o que alavancou “Old Town Road” para o lugar 19 da Billboard. Daí pra frente a internet não falava de outra coisa, até que em Junho – mês do orgulho LGBTQ+ – Lil se assumiu gay. Nessa altura do campeonato a música já estava em primeiro lugar e só conquistou mais visibilidade, principalmente entre a comunidade. A última investida de Lil com “Old Town Road” foi a parceria com RM, do BTS, que regravou a música com o cantor.
Se analisarmos em camadas mais profundas, o que Lil – negro, gay, pobre, sulista, rapper, cantor de country – fez com a imagem do homem hétero, de comercial de cigarro americano, o fiel representante da masculinidade sulista, foi mandar um grande “foda-se”, pois a partir de agora vai ter bicha no rap, preto no country, gordo no top chat e, de repente, esses códigos de gênero que por muito tempo ditaram uma corrida quase que predatória, começou a perder o sentido.
E como a gente pode tropicalizar essa discussão?
Que o Brasil sofre um contexto machista e misógino estrutural, não é novidade para ninguém, mas por aqui, essa figura e espaço primordialmente masculino começou a ganhar uma conjuntura nova. O sertanejo e a música raiz sempre foram espaços habitados por duplas de homens, salvas raríssimas exceções, mas dentro de uma macrotendência de empoderamento de movimentos e ressignificações, esse lugar também começou a ser compartilhado pelas mulheres e agora pela comunidade LGBTQ+.
O “feminejo” não é nenhuma novidade por aqui, muito pelo contrário, é altamente mainstream e foi responsável por agregar discursos e pessoas diferentes dentro desse espaço da música sertaneja brasileira. Ao passo que duplas importantes como Simone e Simaria, Maiara e Maraísa e cantoras como Marília Mendonça ganharam cada vez mais destaque nos festivais de músicas, nos programas de TV, nos streamings e na mídia como um todo, elas conseguiram mudar o discurso e representar muita gente que antes provavelmente não ouvia esse som porque ele partia de uma ótica muito diferente da dela. Essa linguagem sertaneja aliada à discursos progressistas e feministas agregaram, sobretudo, muitas mulheres e também parte da comunidade LGBTQ+ que, a partir daquele momento também pôde ouvir o sertanejo daquelas mulheres, pois aquilo não soava mais misógino e até mesmo lgbtfóbico.
Essa mudança de cenário propiciou o surgimento de diversas festas – como a Balaia, em SP – e bares sertanejos voltado ao público LGBTQ+ no Brasil inteiro. E isso nos leva ao último ponto mais hypado desse espectro de assuntos que ajuda a dar outro sentido para essa figura super masculina do homem country – ou do campo – por aqui: o POCnejo.
Mais conhecido como o “sertanejo das POCs”, o POCnejo é disruptivo até mesmo no jeito de escrever. Caso você tenha sido abduzido nos últimos tempos e não sabe o que significa o termo POC, eu te conto. Lá nos famigerados anos 90/2000, POC era o termo usado para falar das bichas afeminadas, faveladas e que, de alguma forma, tinha o objetivo de inferiorizar o receptor desse bullying. Mas como o mundo contemporâneo ora é estranho e ora maravilhoso, as próprias pessoas do universo LGBTQ+ ressignificaram o termo, que passou a ser usado como uma forma de orgulho de ser quem é. Há quem diga que POC significa em tradução livre “perfeita aos olhos de Cristo” mas isso é outra história.
Não demorou muito até que aparecesse um ótimo candidato a vaga de representante do POCnejo: o Gabeu. Gabriel é o filho do cantor sertanejo Solimões e chamou a atenção no Instagram exatamente por ser gay e ter um relacionamento saudável com seu pai – infelizmente algo pouco comum nesse contexto. Seu hit de estreia foi “Amor Rural”, uma letra engraçada, com a ótica das POC, escrita pelo canto e seu namorado via WhatsApp e já possui mais de 750 mil visualizações no YouTube.