Em 2019, a montagem do espetáculo “Gota d`água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, foi reinventada por um coletivo de atores negros. Transformada em “Gota D`água [Preta]” a história do sambista Jasão, autor de um único sucesso, que trai a mulher e se casa com a filha do dono do conjunto habitacional onde morava com a família, se mantém intacta. Ao ter atores negros, a peça remontou o racismo estrutural brasileiro de várias formas. Assim, Jasão vive às turras com a própria história, com a raça, e com uma espécie de deslumbre por pertencer a uma realidade que renega quem, de fato, ele é.
Jasão tem muito de Duarte, o protagonista do novo livro de Chico Buarque, “Essa Gente”. Como o sambista, Manuel Duarte é um escritor que vive do estrondoso sucesso do romance histórico, “O Eunuco do Paço Real”. Sozinho, com a história pessoal desconectada das raízes que lhe deram inspiração para escrever, Duarte perambula pelo Rio de Janeiro, pedindo empréstimos ao editor, trocando cartas com conhecidos e com a ex-mulher, Maria Clara, e testemunhando remotamente o caos urbano que o país enfrenta hoje.
É simbólica a passagem onde um assaltante amador é abatido por um atirador de elite, e depois de morto, ainda alvejado pela polícia, que recebe palmas da população ao assistir o terror. A cena mexe muito com Duarte, sem que ele entenda o motivo.
Em outro momento, Chico rabisca uma crítica aos personagens que já combateram tantos regimes repressivos, e hoje se deitam com filhas de generais e políticos aliados do governo atual.
Em outra passagem arrebatadora por sua simplicidade, Duarte é salvo de um afogamento por um sargento, um “negro bonito de presumíveis 40 anos, se bem que os da sua raça geralmente parecem mais jovens do que são”. Conversa vai, conversa vem, conta ao sargento sobre ofício e se gaba que, em seus livros, ele pode ser quem quiser, inclusive “posso te salvar de um afogamento”. E escuta do sargento: “nos seus livros você é preto ou branco?”.
Duarte não diz, porque nunca pensou nisso, e abre uma considerável reflexão sobre a cor do protagonista e de todos os livros que lemos.
O modo como Chico habitua Duarte no cenário atual é feito por meio das já citadas cartas, mas também trechos de bilhetes de outros personagens, como os da juíza do prédio onde Duarte mora.
Esse construção é feita com muita ironia, e um bom humor que mesmo em seus momentos mais dramáticos, permanece elegante. Aliás, como o livro inteiro também é. Fluído, mas que finge ser anacrônico, com o protagonista encampando uma fantasia desgostosa: a do intelectual que vive com a vida do avesso.
Não é à toa que Duarte escreve um romance histórico com o título de “O Eunuco do Paço Real”. E Chico usa sua enorme habilidade para escrever uma história que joga o tempo todo com a própria forma. Em vez da crítica de viés óbvio, seus personagens são cinzas. A sutileza, a provocativa imprecisão, e o modo distante como eles passeiam pelo Rio, dá a impressão que a viagem é por uma cidade já destruída. A gente só não está vendo.
Por esse labirinto narrativo que conta a história de um escritor que narra a si mesmo, escrito por um cantor que sempre disseca as palavras atrás da anatomia que existe nos sons e sílabas, as tramas de Jasão e Duarte se ligam por uma brincadeira do destino (ou do próprio escritor). Tanto em “Essa gente” quanto “Gota d`água [Preta]” os heróis de Chico não tem sucesso nas tarefas impossíveis da qual são designados. Autores de um único sucesso, presos num país que jamais se atualiza, designados a eterna pobreza moral que escreve nossa história. Ou seja, no Brasil atemporal das obras de Chico, não há velocino de ouro que nos dê jeito. Nem por sorte, tampouco por meritocracia.
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Vou ler ??
Muito bom, Léo. Uma resenha deliciosa e instigante. Deu vontade de ler agora mesmo. Saudações.
Muito obrigado, Mauro! Fico muito feliz com seu comentário e espero que goste do livro! Abraços!