Compositor que queria escrever como Marcel Proust, cantor que se imaginava cineasta ou professor, músico que destaca suas próprias limitações. O Caetano Veloso que protagoniza “Verdade Tropical” (Companhia das Letras) – sua autobiografia que mistura ensaio, crítica e crônica – é diferente do artista que preenche o palco. É, antes de tudo, um observador muito astuto, e uma esponja de tendências culturais que usa a palavra como seu maior viés de expressão, não a música.
No livro, Caetano registra seus primeiros anos como artista e remonta a própria trajetória da música popular brasileira a partir da sua vida. As duas coisas são indissociáveis.
Quando ele começou, tinha alguma ideia do que queria fazer. Mas, era um período tão efervescente, de acontecimentos tão definitivos na vida do país e com várias manifestações acontecendo ao mesmo tempo, que não é surpreendente ver como como o “acaso” deu uma força.
No livro, Caetano conta, por exemplo, que o nome Tropicália surgiu de uma conversa com o diretor de cinema, Luiz Carlos Barreto, que viu uma obra do artista plástico Hélio Oiticica, chamada Tropicália, e achou-a bastante ligada à música de Caetano. O nome que o compositor imaginava – Mistura Fina – não tem nenhum encanto diante da representatividade de que “Tropicália” ganhou ao longo dos anos.
A instalação de Hélio era um caracol de paredes de madeira, com areias no chão e cheio de plantas tropicais, que desembocava numa televisão exibindo a programação normal…
Esse “acaso” – ou força estranha – que guiava os artistas numa direção inspirada pelo escritor Oswald de Andrade, 30 anos antes disso, com o manifesto antropofágico, era um irrevogável desejo de se fazer uma arte brasileira, que se alimentava de todas as manifestações artísticas para se traduzir um caráter nacional. Era a mistura fina que Caetano queria na música, convergindo e expressões para além dela.
Um exemplo disso, também contado no livro, é o completo êxtase dele ao ver a montagem de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, pelo lendário teatro Oficina.
Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa e Bethânia, eram os baianos à frente desse movimento, mas estavam muito bem acompanhados de Tom Zé, Mutantes, Zé Celso, Nara Leão, Waly Salomão e diversas outras personalidades da nossa cultura. A amizade deles, inclusive, tem grande destaque no livro e é recheada de momentos ternos, tensos ou puramente mágicos.
Em 1969, depois de preso e prestes a ser exilado em Londres pela Ditadura Militar, Caetano e Gil fizeram uma última apresentação no teatro Castro Alves, em Salvador. O resultado disso é o disco Barra 69. O nome foi uma sugestão de Gal. E a banda foi montada num catadão e reuniu Pepeu Gomes – então, com 16 anos! – e Jorginho. Baby Consuelo também estava por ali, assim como Moraes Moreira.
O ponto de encontro era um barzinho caído, em Salvador, chamado Brasa.
Baby, que se chama Bernadete, ganhou o nome de Álvaro Guimarães, diretor de cinema cuja amizade foi fundamental pra Caetano. Ele deu o nome para uma personagem de um filme, que seria interpretada por Baby. O filme nunca foi feito e ela se juntou aos Novos Baianos.
No Barra 69, Caetano e Gil cantaram sangrando mesmo. Foi a primeira vez, inclusive, que Gil tocou “Aquele Abraço”.
Os fatos, tão marcantes quanto esse, são polvilhados pela prosa super sofisticada de Caetano. Ele escreve “Verdade Tropical” como um romance histórico mesmo. Cria expectativa, destaca personagens, costura os fatos com a fluência de quem faz um romance muito íntimo.
É um livro delicioso. Mesmo em capítulos mais sombrios, como Narciso em Férias, onde ela fala sobre sua prisão durante a ditadura militar, Caetano encontra pontos narrativos que posicionam o leitor dentro da sala: as baratas, a falta de libido, o ócio. E isso faz uma diferença danada na hora de enfrentar as suas 500 páginas.
Quem nunca ouviu falar em Tropicália, ou qualquer um dos seus artistas, tem nas mãos a história de um jovem baiano sem saber muito o que fazer, mas com um desejo irascível e uma fome imensa por cultura, que é traduzida nas boas análises do próprio cantor a respeito de outros artistas, períodos ou obras.
Um dos mais emblemáticos trechos se dá justamente em uma apresentação onde Caetano tocou “É proibido proibir”, em 1968. Gil participou desse mesmo festival com “Questão de ordem”. Caetano não gostou nada de ver a música de Gil ser desclassificada e a sua posta na semifinal. O público não aceitou as novidades de ambos. A gravação é antológica: Caetano esbravejando contra a plateia, que vaiava muito: “Essa é a juventude que quer tomar o poder? Se vocês forem em política como são em estética, estamos fritos”. Profético! Se o jovem Caetano soubesse o que estava por vir 50 anos depois, em 2018…
Apaixonado por cinema, “Terra em Transe”, filme de outro baiano bom, Glauber Rocha, foi por muito tempo a linha de chegada de Caetano. Ele queria que qualquer uma das suas expressões atingissem a potência que o filme teve em sua vida.
Nunca quieto, não virou diretor de cinema, apesar de ter dirigido um filme, nem professor, tampouco “Verdade Tropical” seria um livro de Proust. Caetano puxou a tropicália, soprou o axé com “atrás do trio elétrico”, fez rock, bossa e carnaval. É um artista que ainda hoje absorve os movimentos para extrair deles a nacionalidade interna, a brutalidade da doçura, a amargura da alegria, a rivalidade da amizade, a brasilidade do rock’n roll. A rigor, a tropicália não é misturar: é achar o que é há de mais brasileiro no mundo.
Falar de “Araçá Azul”, um disco muito ligado ao movimento concretista, e que uns acham até incompreensível, é um epílogo perfeito. “A aventura que se iniciou para mim com o tropicalismo não acabou nunca. Não causa demasiada estranheza, no entanto, quando ouço dizer que o Araçá Azul marcou o fim de uma etapa”.
O fim da etapa não é, para Caetano, um fim. Sua vida é contínua, enraizada na história do país. O tempo é um elemento poético, não propriamente temporal. Nas rimas do estilo de “Verdade Tropical” e de uma obra musical tão rica, o tempo é “tempo, tempo, tempo, tempo”.
Pra saber mais: Os Doces Bárbaros, documentário sobre o grupo fundado por Gil, Caetano, Gal e Bethânia, filmado em 1977, está disponível na Globoplay.