Em uma das cenas mais emblemáticas de Roma, filme do mexicano Alfonso Cuarón, a babá e empregada Cleo (Yalitza Aparicio) escuta da patroa: “nós, mulheres, estamos sempre sozinhas”.
“Nunca, raramente, às vezes, sempre”, da diretora Eliza Hittman, é um filme inteiro sobre essa frase.
A história começa quando Autunm (Sidney Flanigan), uma adolescente de um pequeno condado rural da Pensilvânia descobre estar grávida e procura assistência médica em Nova York.
O que parece ser simples, já que o aborto nos Estados Unidos é legalizado em alguns estados, se transforma numa trajetória cruel sobre a interminável opressão que as mulheres vivem, e em como os homens mantém essa roda girando.
O que é novo, bárbaro e ao mesmo tempo desolador em “Nunca, raramente, às vezes, sempre” é usar esse aspecto da gravidez para atravessar um discurso empoderado, claro, mas extremamente sutil. É um filme de poucos diálogos e, quando eles são ditos, há sempre uma fortíssima carga dramática, um peso em ter que se defender o tempo todo.
Em uma cena, por exemplo, vemos Autunm e a prima (Talia Ryder) fecharem o caixa do supermercado onde trabalham. Para encerrar o turno, devem entregar o dinheiro para um supervisor. Todos os dias, ao entregar a bolsa, esse homem beija a mão das duas adolescentes.
Enquanto Autunm mostra uma resistência muito fria, quase como um contraceptivo ao asco, sua prima expressa o nojo daquilo sempre.
Autunm, ao longo de dois dias em Nova York, já que ela descobre que o sistema legal é cheio de burocracias e não pode voltar pra casa rápido como planejou, passa por diversas situações que confirmam a solidão enquanto mulher.
A cena que dá nome ao filme é desesperadora. Uma servidora da clínica faz algumas perguntas para Autunm, que obrigatoriamente deve responder apenas “Nunca, raramente, às vezes, sempre”. Nos poucos minutos é possível enxergar vários pontos terríveis da vida de Autunm e na sua expressão que vai do horror à resistência com a mesma resposta.
O olhar de Eliza Hittman faz “Nunca, raramente, às vezes, sempre” ser um filme ambíguo. As mulheres, provavelmente, o veem diferente dos homens. E aí que toda a habilidade e sensibilidade da diretora para introjetar esses temas é genial. A violência tá lá. Ela não foi dita. Ela é mostrada. Enquanto as mulheres veem um mundo solitário, os homens enxergam a devassidão do que causam. Mas, ao contrário delas, não estamos sozinhos. Fazemos parte de uma cultura extensiva.
“Nunca, raramente, às vezes, sempre” não é um filme sobre aborto, como um dos membros da Academia disse. No seu formato pequeno e íntimo, é um poderoso trabalho para entender o que de fato significa “se tornar mulher” num mundo onde elas estão sempre sozinhas.
Onde assistir: Telecineplay