Filmes pra ver: Medida Provisória

Dirigido por Lázaro Ramos, o filme é provocativo, original e muito atual.
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Na Idade Média, era comum as tropas cercarem cidades que pretendiam conquistar impedindo a livre circulação, em vez de travarem uma batalha pelo território. Eram os chamados cercos medievais. Antônio (Alfred Enoch), o protagonista de “Medida Provisória” (Brasil, 2022), em cartaz nos cinemas, está justamente vivendo um cerco. 

E um futuro próximo, o governo brasileiro propõe que todos os afrodescendente – ou melhor, as pessoas de melanina acentuada – retornem ao continente de origem. A proposta da MP 1888 é uma reparação histórica: se eles foram retirados de seus países à força, agora podem retornar livremente. 

Se “Medida Provisória” começa como uma sátira galhofeira, não muito depois desse início, o filme muda o tom. Passa a ser um drama pesado e assustadoramente atual. Pra evitar a deportação, Antônio não pode sair da própria casa. Lá, ele fica com o jornalista e primo, André (Seu Jorge). E juntos eles aguardam por notícias da esposa de Antônio, Capitu (Taís Araújo). 

Filmes pra ver: Medida Provisória
Seu Jorge e Alfred Enoch

Com essa sinopse, havia muito espaço para criar uma obra panfletária, ou irreal, ou mesmo sem peso para lidar com as questões como escravidão, racismo estrutural e preconceito. Não é o que acontece. Trabalhando pela primeira vez como diretor de cinema, Lázaro Ramos, que também escreve o roteiro com Lusa Silvestre, traça a narração sem perder o tino. Seu olhar afiado capta os momentos críticos da cultura preta e discute o resultado dos anos de preconceito, violência e cerceamento ao povo negro como uma falha irreparável, mas repetida à exaustão. 

Distopias geralmente imaginam mundos impossíveis para refletir sobre a era vivida. É uma forma de interpretação da opressão. “Medida Provisória” é uma obra do gênero adaptada da peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação. Tirar a história do palco e botar na tela foi um trabalho duplamente complicado. O que Lázaro Ramos faz é justamente entender qual é o centro da narrativa, mirar em um único alvo e concentrar os pontos fortes do texto pra desenvolver sua crítica. Para isso, ele compõe quadros muito simbólicos, e destrava metáforas com cenas aparentemente simples. 

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Lázaro Ramos, ator e diretor.

Em uma delas, por exemplo, Antônio dá uma notícia feliz para André. Lázaro filme a cena de dentro de casa e, quando os personagens comemoram, ele joga a câmara para fora do apartamento enquadrando os dois nas grades da janela. 

Sua sensibilidade não é apenas visual. Adriana Esteves faz Isabel (olha só o nome!), a mulher responsável por executar o plano de evacuação da MP 1888 (olha só a data!). A montagem fluida e a ótima trilha sonora colaboram para tornar esse mundo futuro mais real. Em outro diálogo, André diz: “como é que a gente não viu isso, como é que a gente riu disso?”

Tamanho controle do diretor com o material que tem em mãos se reflete no elenco. Escolher um ator estrangeiro foi uma baita sacada. Alfred Enoch é filho de mãe brasileira e pai inglês. Seu português é quase perfeito. Mas dá pra notar que ele não nasceu aqui. E isso é ótimo dentro da proposta do filme. É uma interpretação contida em boa parte do tempo, e sabe ser efusiva em momentos importantes.

Adriana Esteves, outra baita atriz, segura uma personagem que nas mãos de um artista menos experiente, poderia ser maniqueísta, opaco. Mesmo com uma motivação já batida – a de só estar fazendo seu trabalho – a atriz extrai muito de Isabel. Seu Jorge também é destaque. E algumas participações especiais funcionam quase como easter eggs, mas também como exaltação, como referência, como camadas extras a uma história de resistência e luta. 

É isso que “Medida Provisória” faz tão bem: discute a história olhando para vida de agora; joga o absurdo da sinopse para dentro da casa dos espectadores, do nosso trabalho, do nosso grupo de WhatsApp da família. E vendo o Brasil de hoje, não é “em um futuro próximo” que leis como a fictícia MP 1888 podem existir. A Idade Média está sendo atualizada todos os dias. Estamos, sim, cercados. A violência, a vingança ou o revide, não parecem ser respostas diretas para o diretor. No seu filme, a rendição dos brasileiros é a grande distopia. For dele também será? 

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