No dia em que não houve amanhã, o despertador tocou no mesmo horário.
O meu às 06h20, o seu às 08h00 e alguns bem antes disso. Deixamos que a água escorresse sobre nossos ombros, que um tablete de glicerina perfumado percorresse as cavidades de nossos corpos – como um explorador em território conhecido –, que a espuma em nossas cabeças evocasse o mar, permitindo que as memórias de ontem inundassem o hoje e lentamente regressassem como ondas, tornando a se misturarem, até que perdêssemos a conta do ir-e-vir e aceitássemos, por bem, que o tempo não tem âncora.
Devo dizer que é nesse momento, quando desistimos de divagar e enxugamos reflexões na toalha de banho, que finalmente podemos nos considerar despertos. A partir daí, mergulhamos numa espécie de não-pensar e estamos aptos a executar o que o dia nos propõe.
Há, afinal, coisas mais urgentes a se fazer depois de fechar o registro do chuveiro – alimentar o gato, passar o café, lavar a louça de ontem, empenhar coragem para abrir o jornal ou a caixa de e-mail. Cada movimento que nossos corpos praticam para acompanhar os ponteiros do relógio, nessa espécie de ballet barato, nos insere num contexto que foi batizado com o nome de realidade.
No dia em que não houve amanhã, tudo ocorreu assim, exatamente como te conto. Nenhum sinal, nenhuma sirene, nenhum disco voador desceu à Terra para anunciar que o irremediável estava prestes a acontecer. Não nos culpo por não termos reparado o que era imperceptível.
Nossos filhos foram à escola, os carteiros entregaram contas para os devidos destinatários, vizinhos desejaram “bom dia” no elevador – pela cordialidade, não pela intenção –, os automóveis formaram tortuosas filas e alguns buzinaram na esperança de que magicamente o semáforo ficasse verde. O milharal deu milho. A cerejeira deu flor.
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“voltamos”
Esse texto foi uma viagem maravilhosa!
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