Existem artistas que alcançam um certo tipo de status, uma condição rara ao unir tempo, espaço, obra e vida: eles não são atemporais, eles são o tempo em si. Quando Gal Costa junta sua voz aos primeiros sons da melodia de Da Maior Importância, por exemplo, é possível entender isso com mais clareza.
A música é criação de Caetano Veloso, um dos grandes amigos e parceiros da cantora brasileira que faleceu na quarta-feira (9) de manhã, em São Paulo. Ele fez letra e som, mas foi ela quem ensinou a melodia a dançar na boca das pessoas, a ter a mesma leveza de um passarinho cortando os prédios e driblando os aviões.
Não, a comparação não é exagerada. Em 2018, pouco depois das eleições, eu fui para a Nossa Casa, um lugar na Vila Madalena. E naquele dia, em meio a sensação esquisita que o país vivia, eu ganhei um abraço do Calebe. Meu amigo não disse muita coisa, apenas cantou alto o refrão da música que estava tocando: “É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte”.
Levou quase quatro anos para que eu escutasse a própria Gal Costa entoar o trecho. Foi em Belo Horizonte, no Breve Festival, em 2022.
Gal se apresentou entre os shows de Ludmilla e Gloria Groove, duas estrelas atuais do pop brasileiro. Vestida inteiramente de preto, com uma cabeleira igualmente vistosa, com cenografia econômica e banda de pouquíssimos integrantes, destoava das mega produções.
Gal puxou de uma vez só “Fé cega, faca amolada”, “Hotel de estrelas” e “Divino, Maravilhoso”. Transformou o Mineirão em uma galáxia e circulou pelo estádio inteiro com uma ousadia que poucos artistas dispõe. Veja só: era um dos primeiros festivais de grande porte depois de dois anos travados pela pandemia. Havia uma loucura saudável, uma esperança em recuperar o tempo perdido. Para 50 mil pessoas, Gal faz um cover de João Gilberto!
Ao dizer que cantaria “Brasil”, do Cazuza, a cantora fez um protesto discreto: “o país não deixa eu tirar essa música do repertório” e ouviu o público acompanhá-la com tanta força, com tanta paixão, que não há dúvida de que são outros os motivos da música continuar no setlist.
No Coala Festival, poucos meses depois e o que viria a ser sua última apresentação pública, Gal fez um dos grandes shows da edição. Foi a primeira artista confirmada.
“Esperamos por muito tempo, hein Coala”, disse sorrindo e à vontade. Em uma entrevista para a revista Rolling Stones, celebrou ter uma “plateia tão jovem e tão interessada”.
Ao vivo, “Vapor Barato” se transforma em outra coisa; em um tipo paralelo de realidade que suga as pessoas e exige a completa entrega de quem está ouvindo a música. É uma canção nua.
Gal estava falante, bem-humorada. Agradeceu a presença de um dos seus convidados assim: “Esse gatinho do Rubel… ah, se eu fosse mais jovem”.
Foi de “A história de Lily Braun”, do Chico Buarque a “Um dia de Domingo”, escrita pelo Michael Sullivan e clássico absoluto em qualquer karaokê, com o mesmo encanto.
Não tem música antiga demais ou nova demais. Gal gravou Marília Mendonça, Mallu Magalhães, Criolo, Milton, Gil e Caetano como se fossem composições suas, nascidas de dentro dela. O que é bárbaro em uma artista tão impressionante como ela é justamente fazer versões definitivas; é achar o tom na interpretação de maneira tão absoluta que resta ao compositor internalizar a persona da artista e funcionar mais como um tradutor do que o outro diz.
Gal não tomava emprestado. Ela se apropriou de “Baby”, “Dom de Iludir”, “Gabriela” e tantas outras, além de ser uma espécie de “mãe” das cantoras que a sucederam. Criou 40 discos. Sua influência é inescapável.
Ainda no Coala Festival, fez uma das mais apaixonadas versões de “Sorte” que alguém poderia fazer e deixou nítido que o presente é o tempo em que ela sempre vai se conjugar.
Porque Gal é o tempo em si. A todo vapor, ela é estratosférica, é divina, fantasia fa-tal, é tropical. E agora “a pele do futuro” vai ser usada como casaco para aquecer os que teimam em ficar para trás.