Ruy Guerra e os 50 anos de uma das mais importantes peças do teatro brasileiro: Calabar, o elogio da traição

Ruy Guerra e os 50 anos de uma das mais importantes peças do teatro brasileiro: Calabar, o elogio da traição Ruy Guerra e os 50 anos de uma das mais importantes peças do teatro brasileiro: Calabar, o elogio da traição

– Vida longa a Ruy Guerra!

– Já está longa!, responde o cineasta à louvação. 

Aos 91 anos, o cineasta moçambicano, mas radicado brasileiro desde 1958, se mantém tão lúcido quanto filmou Os Fuzis, Os Cafajestes e A Queda, expoentes do Cinema Novo. Em evento especial para a comemoração dos 50 anos da montagem de Calabar: o elogio da traição, o musical criado para o teatro juntamente com Chico Buarque, Ruy Guerra ainda fica surpreso com a presença das pessoas. 

O papo aconteceu no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo, no último dia 12 de abril. Depois de uma introdução do apresentador, Ruy fala da peça, toma outros rumos e não demora a se desculpar: “O que eu ia falar mesmo? Coloquial tem besteira no meio”. 

Calabar: o elogio da traição, nasceu de um desejo dos dois, Ruy e Chico, de trabalharem juntos “em um musical só nosso”. A dupla se encontrava todos os dias. Seja pra jogar um carteado, seja para compôr. “Chico e eu tivemos uma competição feroz no jogo de cartas. Todo mundo podia ganhar, menos ele”. 

Embora tenha muitas leituras, o personagem, segundo Ruy, movia um interesse nacional muito maior do que a traição que lhe deu fama. Dono de terras em Alagoas, Domingos Fernandes Calabar era aliado das forças portuguesas à época do Brasil Império. Sem o devido reconhecimento pelo seu trabalho, se aliou aos holandeses e facilitou a entrada das tropas inimigas no território nacional. 

“Não nos interessava Calabar. O que nos interessava era saber por quê aquele cara era o único visto como traidor”. Passaram um ano enfiados em casa, escrevendo o texto e as canções. Quando cria em parceria, Ruy ignora quem fez o quê. Mas, num relaxamento da própria lei, contou que muito antes da montagem, enviou uma letra para Chico. Anos depois, o compositor a solicitou: 

“Ruy, cadê aquela letra, a Tatuagem”. 

“Não tenho. Dei pra Leila [Diniz, então esposa de Ruy]. Rasgou”. 

“Então escreve de novo e me dá”. 

Os musicais brasileiros, super distantes da fantasia da Broadway, sempre produziram materiais provocativos, originais, críticos. Para Ruy, é um jeito poderoso de contar uma história. A escolha pelo formato se justifica porque a música “é uma forma de arte menos racional, mas que agrupa conceitos lógicos amplos. […] percebemos muita informação sem saber que percebemos”. 

De todas as composições, Fado Tropical e a já citada Tatuagem são especiais. “Daquelas músicas que você não sabe de onde saiu”. E qualquer coisa que Gal e Elis cantam, para Ruy, é a forma definitiva. “Bethânia não mora no meu coração. É aquela coisa do santo…” 

E quanto de Calabar fala do Brasil de hoje? Para Ruy Guerra, quase tudo. “A traição continua. Os traidores continuam. Os filhos da p#%a estão aí”. 

Se vocativo para mudança pode ser uma certa desobediência civil, ele faz a resalva com bom-humor. “Os franceses tem um pouco. Mas não tenho muita paciência para francês. Tirando meus amigos, detesto todos”. 

Sem nunca mexer no texto sem a presença um do outro, como confidenciou o cineasta, eles decidiram transformar a peça em filme. Ainda sem elenco, sem data para começar a filmar. “O Chico quer fazer novas músicas”. O que se vê nos olhos de Ruy com a notícia é um futuro ainda sem destino, mas forte o suficiente para colocá-lo de pé ainda hoje. 

O trabalho não para só nesta possível filmagem. Nos próximos meses, estreia uma montagem de Dom Quixote, dirigida por Jorge Farjala, com letras de Ruy Guerra e música de Zeca Baleiro. 

O cineasta também finaliza o filme A Fúria, continuação de Os Fuzis e A Queda, e terá Daniel Filho no elenco. Outros projetos também estão em pauta. 

É genial ver alguém que já fez tanto ainda produzindo. Essa paixão pela arte, pela criatividade, por ter algo a somar ao momento e ser constantemente fulminado por uma energia maior e melhor do que a biologia do corpo, não é só uma inspiração para gente que assiste ao Ruy. É uma espécie de encantamento coletivo. 

Tudo o que ele já fez pelo cinema nacional, pelo teatro com Calabar, pela música com parcerias com Milton Nascimento, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Sergio Ricardo, não cabe nos 91 anos que ele tem agora. 

Vida longa a Ruy Guerra. 

Curta e média também.

Add a comment

Deixe um comentário