Não há dúvida sobre o enorme impacto da IA na produtividade. Mas, simultaneamente e de maneira bem menos explícita, vai surgindo uma crise de significado no ato de escrever, de criar. Um golpe no processo criativo.
O que motivou esse insight meio dramático foi a nova forma compacta da AI generativa: O BOTÃO.
Eles estão abrindo passagem e aterrizando em todos os espaços onde possa ocorrer uma escrita: em um email, um doc, um post, um tweet. Da mesma maneira que aquele cursorzinho fica lá piscando à espera do seu texto, agora tem também um botãozinho igualmente disponível para fazer isso por você.
Até agora você ia atrás da IA para pedir ajuda. Agora ela simplesmente surge na sua frente, oferecida.
A moleza dentro da moleza.
Olha o Bard disfarçado de botão no Docs:
Ao clicar no botão, a IA fica pronta para receber umas poucas palavras, assim como um gênio da lâmpada ou a voz do Drive-throu do McDonald’s. Faça seu pedido.
Mas se milhões de pessoas já estão usando o ChatGPT, qual a diferença?
A diferença está no aproveitamento da tirania da página em branco.
As pessoas VÃO apertar esse o botão. Mesmo que nem estivessem pensando em usar IA. Mesmo que o texto já estivesse praticamente transbordando dos seus dedos. A tentação será forte demais, não apenas para preguiçosos e/ou incompetentes, mas também para os grandes escritores. Afinal, somos todos humanos.
É muito mais fácil – e tentador – começar com alguma coisa do que com nada. E basta aperta O BOTÃO.
Alunos vão usá-lo para começar os TCCs da vida.
Executivos vão usá-lo para iniciar e-mails, relatórios ou documentos.
Professores vão usá-lo pra dar feedback.
Cientistas usarão para escrever textos.
Note que não estou aqui criticando o USO da AI para gerar textos.
O post é sobre o impacto dessa interferência inicial da IA na qualidade final dos textos.
Do mesmo jeito que acabamos com o ócio criativo, vamos agora exterminar aquela mão no queixo diante da página em branco. Claro que a AI pode nos ajudar a gerar infinitos rascunhos, mas acho que na prática, a tendência é ficarmos satisfeitos com os primeiros esboços.
A eliminação do esforço pode causar uma falta de profundidade. Como mencionei em um post anterior, escrever é antes de tudo… um ato de pensar.
Escrever nos faz pensar porque nos obriga a organizar nossos pensamentos para alguém que não está dentro da nossa cabeça. Mas agora tem um botão para fazer isso por você.
Tenho certeza que você já sabe o que vai acontecer: seremos afogados por conteúdo ruim, disfarçado de texto bom.
Mais uma vez, PARECER será mais valioso do que SER. A mesma enxurrada de gente que parece o que não é que nos assola pelas redes sociais, agora em forma de texto.
Exemplos práticos
Olha que interessante esse caso descrito por um professor.
Professores são solicitados a escrever cartas de recomendação para alunos o tempo todo e uma boa carta leva um certo tempo tempo para ser redigida. Você precisa conhecer bem o aluno, pensar nos requisitos da vaga, os pontos fortes do aluno e muito mais. E ser trabalhoso é justamente um dos motivos que valorizam uma carta desse tipo. O fato de um professor reservar esse tempo todo para escrever uma boa carta de recomendação é um sinal de que ele realmente apóia e acredita na sua indicação. É uma sinalização.
Ou… ele pode apertar O BOTÃO.
Veja como seria. Primeiro um curto texto pra dar o contexto, depois uma proposta do Bard e outra do chatGPT-4
Como você pode ver, apenas colando a descrição do trabalho e uma descrição básica do aluno:
Meu nome é professora Jo Lee, escreva uma carta de recomendação para o brilhante aluno Sally Doe, que tirou A na minha aula de empreendedorismo na faculdade. Faça isso para este trabalho: Infosys Foundation
Em poucos segundos, a carta de recomedação estava pronta. E perfeita.
Prezado Comitê de Contratação,
Estou escrevendo esta carta para recomendar entusiasticamente Sally Doe para o cargo de estágio na Infosys Foundation USA. Como professora de Empreendedorismo em nossa instituição, tive o prazer de ter Sally em minha turma no último semestre, onde ela sempre demonstrou seu incrível intelecto, pensamento estratégico e dedicação ao trabalho.
Em sala de aula, Sally foi uma aluna de destaque, não apenas pelo calibre de seu trabalho, mas também por seu comprometimento e espírito colaborativo. Ela obteve uma nota ‘A’ impressionante em meu curso desafiador, o que é uma prova de seu comprometimento e capacidade de compreender, analisar e executar conceitos e tarefas complexas.
Uma das características notáveis que Sally exibiu em minha aula foi seu talento para plataformas digitais de aprendizado, o que a torna a pessoa ideal para contribuir com o desenvolvimento e gerenciamento do Pathfinder’s Online Institute. Ela mostrou uma excelente compreensão das tecnologias modernas e frequentemente estava na vanguarda das discussões sobre como aprimorar a experiência do usuário e o design.
Além disso, as excelentes habilidades de comunicação de Sally, tanto escritas quanto verbais, a diferenciam de seus colegas. Suas atribuições sempre foram articuladas de maneira clara e envolvente, revelando sua capacidade de elaborar narrativas convincentes. Estou confiante de que ela utilizará essa habilidade para contribuir significativamente com suas mídias sociais e esforços de marketing.
Além disso, sua capacidade de gerenciar e analisar dados seria inestimável para apoiar a gestão de subsídios e o desenvolvimento de um relatório de impacto. A acuidade analítica de Sally, atenção aos detalhes e proficiência em extrapolar insights qualitativos e quantitativos de conjuntos de dados complexos foram vistos em vários projetos de classe.
Em termos de eventos, Sally desempenhou um papel fundamental na organização e implementação de muitos de nossos eventos e campanhas universitárias. Sua liderança, criatividade e capacidade de trabalhar sob pressão sempre foram aplaudidas por seus colegas e professores. Essas experiências e suas habilidades seriam extremamente benéficas para o planejamento e implementação do Pathfinders Summer Institute.
O que diferencia Sally não são apenas suas realizações acadêmicas e extracurriculares, mas também sua paixão pela educação, principalmente no campo da ciência da computação. Eu a vi pesquisando ativamente e participando de discussões sobre as tendências da educação K-12. Seu interesse neste campo, sem dúvida, trará novos insights e impulsionará sua equipe.
Concluindo, não tenho reservas em dar minha mais alta recomendação para Sally Doe. Acredito firmemente que ela seria uma adição excepcional à Infosys Foundation USA e contribuiria significativamente para seus vários projetos. Ela exibe as qualidades necessárias para o sucesso nesta função: iniciativa, inteligência e uma natureza altamente cooperativa.
Obrigado por considerar minha recomendação. Caso necessite de mais informações, terei prazer em fornecê-las.
Atenciosamente,
Professor Jo Lee
Esta é uma boa carta de recomendação, respondendo ponto a ponto aos detalhes do trabalho e sugerindo um conhecimento real de “Sally” (que é totalmente falso). Você também notará que ele inventa coisas, mas de uma forma bastante plausível. Seria fácil tornar a carta mais correta, seja fornecendo mais material no prompt ou interagindo com a IA:
Incorpore os seguintes exemplos reais: ____.
Substitua a história sobre suas atividades extracurriculares por elogios sobre como ela se saiu nesta tarefa: _____.
E o pior disso tudo é que A CARTA É ÓTIMA.
É bem melhor do que a maioria das cartas de recomendação que circulam por aí. Ou seja, ainda existe o risco de prejudicar o aluno ao não escrever uma carta de recomendação por IA, especialmente se o professor não for um bom escritor. Portanto, as pessoas agora precisam considerar que o objetivo da carta (conseguir um emprego para o aluno) está em contraste com o método moralmente correto de atingir o objetivo (o professor gasta muito tempo escrevendo a carta).
Agora considere todas as outras tarefas em que a escrita final é importante porque é um sinal do tempo gasto na tarefa e da consideração que foi dedicada a ela. Avaliações de desempenho. Memorandos estratégicos. Ensaios universitários. Candidaturas a subsídios. Discursos. Comentários sobre papéis. E muito mais.
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Só faltou dizer que este texto foi escrito por uma IA… 🤣🤣🤣
Não deveria nem responder um comentário maldoso como esse, mas só para não deixar dúvida: em primeiro lugar, se fosse escrito por IA não teria problema, desde que fosse relevante e creditado. Segundo porque esse texto é meu, exceto alguns exemplos de um testemunho de um artigo feito por um professor, como mencionado no próprio texto.
Em tempo: comentario sem autoria “Marcelo”, isso sim é questionável.