Certa vez, durante uma oficina de dramaturgia que eu fiz, a professora vaticinou: “é impossível ler um livro de poesia de uma vez só. Tem que dar tempo pro poema respirar.”
Antes do Melaço dar Água na Boca (Mondru Editora, 2023), de Luiza Prado, é um tipo avesso de texto que não respira, e sim vive em sua forma química: o oxigênio. Mas pode ser água, carbono, melaço, quintas-feiras.
Da indefinição da forma, Luiza brinca com o próprio modo de se ler cada criação. Sem vírgulas e pontos, as pausas invisíveis e o tal respiro do poema, responsabiliza o fôlego do leitor. A ladeira só parece curta.
Luiza é roteirista e diretora de filmes, fazendo tanto trabalhos para a publicidade quanto para o cinema. A experiência atrás das câmeras, afiando o olhar para a captação mais precisa, certamente ajuda na escrita da sua poesia, que é repleta de imagens, de descrições a embaraçar a ilusão do que o leitor realmente está vendo. Ao empurrar o cotidiano para dentro dessas imagens, a poeta arranca todo o senso comum que eventualmente palavras como super bonder, salada, ou pistinha iê iê iê podem ter.
“se meus dedos insistem em grudar na super bonder
é porque minhas mãos precisam
se convencer da permanência das coisas”, escreve em “figurinha repetida”.
Antes do Melaço dar Água na Boca é dividido em cinco atos. Numa olhada apressada, eles parecem ilhados. Como em um roteiro, os atos dispõe de uma cronologia de acontecimentos que ligam os sentidos, dão um rumo, que vira e mexe abrem atalhos, alçapões e portas escondidas. “se um gato tem quatro pernas e um cachorro tem quatro pernas logo gato + cachorro = polvo”.
Não é problema nenhum porque a voz de Luiza Prado é magnética, e de forma sensível consegue conectar o próprio tempo das coisas. Como em “cacilda eram tantas”, um dos melhores poemas do livro.
Cacilda Becker é uma lenda do teatro brasileiro. Uma artista que inspira independente da época ao ser lembrada. Luiza resgata o inacreditável momento da morte da atriz, durante a exibição da peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. É inacreditável porque o texto dele é dividido em dois atos e fala de dois homens que eternamente esperam pela chegada de Godot.
Cacilda interpretava Estragon. No intervalo entre o primeiro e o segundo ato, teve um AVC e saiu dali para o hospital. A plateia daquele dia ainda espera Cacilda retornar.
A história é uma poesia, não é? Luiza acha mais: “trinta anos setenta peças cacilda becker esperou apenas por godot e de repente mais nada cacilda um derrame sem anúncio cacilda até o imprevisto é rouco costuma sussurrar até breve nem beckett seria capaz de imaginar uma partida tão perturbadora assim”.
Novamente, o jeito corrido, de pontuação fugidia, impõe um espanto conjunto, quase empático. E ao mesmo tempo cria uma ambiguidade muito rica. Os títulos são quase partes literais dos versos, ampliando a duplicidade das coisas. No livro, o verbo cair é desdobrado de várias maneiras. É engraçado como o tema se estabelece. Pra cair, é preciso tá de pé, tá distraído, bobo. Pra levantar é preciso o quê?
Como poeta, Luiza Prado não levanta ninguém. É muito mais uma ladra que rouba objetos e sentidos comuns, aparentemente sem valor, invade os cômodos da casa e anda com passinhos lisos para fazer o dono perceber a falta muito depois do delito e aí, só aí, entender o tamanho do espaço que ficou vago. O ordinário da vida, os golpinhos cotidianos também doem. Mas “ao contrário da dor, é preciso aprender a espreguiçar.”