Quando Iara (Ana Carbatti) adentra o palco, para diante de uma bancada e sorri de maneira afável, o espectador de Ninguém Sabe o Meu Nome, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, relaxa. Iara explica que é importante que nós estejamos confortáveis, porque a ideia é não haver nenhum confronto. Então a luz na plateia se apaga, concentrando o foco na personagem em cena.
Iara é uma mulher preta, mãe de um garoto também preto. Após acordar de sonhos intranquilos, Iara se dá conta da sua condição dentro da sociedade onde vive e teme pela segurança do filho.
O palco com poucos objetos está quase no mesmo nível da plateia. Dirigido por Inez Viana e Isabela Cavalcanti, a proposta é criativa para aproximar o público de uma argumentação diferente sobre o racismo. Ninguém Sabe o Meu Nome não é raivoso, violento, ou incriminatório. E passa longe de ser panfletário. Ao criar este ninho de discussão e concentrar o relato na figura materna, o espetáculo emocionante desativa qualquer tipo de debate enviesada sobre o tema. A dor e o medo de uma mãe são densas o bastante. Estão no centro da história contada ali.
A conversa adensada numa espécie de palestra também não é feita para ser “didática ou chata”, como sublinha Iara algumas vezes ao longo do texto. Sem perder o fio emotivo que costura tão bem cada ponto, Iara usa um ring light de frente a um fundo branco para gravar vídeos. Essa absorção de um método de discurso comum da era digital é uma encenação genial da direção, justamente porque Iara não é uma personagem da internet. Nem pode ser. Ela é real, uma mulher quebra-cabeças que devora séculos de história discriminatória e precisa de socorro por meio de ações concretas, não de likes.
Iara carrega o peso do mundo nas costas. A sua cordialidade na interpretação é, inclusive, uma crítica inteligente ao modo como as pessoas pretas precisam ser. Agir de forma respeitosa mesmo sendo desrespeitada também não é um tipo de condenação eterna? Pode ser. Mas a dramaturgia de Mônica Santana não mira o mito de Atlas, o deus condenado a suportar o peso do planeta. Se há alguma referência em seu trabalho, o texto se aproxima mais do que George Berkeley escreveu lá atrás, em 1709, em Um Ensaio Para um Nova Teoria da Visão. Berkeley taxou o seguinte: “ser é ser percebido”.
É curioso porque ao lembrar da teoria dele para falar da imaterialidade das coisas, dos objetos que precisam ser olhados para existirem, há um choque direto com o relato de Iara. No Brasil, especificamente, o negro não é percebido. É imaterial. Sua história é ignorada, apagada numa tentativa de também fazer o racismo não existir. Iara magnetiza o cotidiano de uma mulher preta para ilustrar as barreiras. Ao convidar uma chef para produzir o buffet de aniversário do filho, Iara escuta da convidada assim que ela entra em seu apartamento: “A Iara está?”. Certamente, a chef imaginava que a mulher preta à sua frente era a empregada…
A cena é um baque. Se preparar a festa de aniversário do filho significa aquilo, qual é o mundo que ele vai herdar? Como vai ser percebido pelos outros? Ele vai existir ou sobreviver?
O trecho amplifica a dor de outras mães. Em dado momento, Ana Carbatti se deixa perceber como atriz. Carbatti divide a cena com Iara, sua personagem, e impele o público a perguntar o que quiser. A força do ato vem de como a maravilhosa interpretação da atriz suga o público para dentro do espetáculo, impedindo que a conexão se rompa. De fato, uma atuação inteligente, delicada e catártica.
Segredos e Mentiras (Secrets and Lies, 1996), dirigido por Mike Leigh, talvez adicione um ponto interessante. Neste filme disponível na Mubi, conhecemos Hortense, mulher preta, que perdeu a mãe adotiva. Em busca da sua origem, descobre ser filha de mãe branca. Hortense não precisou ser percebida pela mãe biológica para existir. Foi o contrário. Mesmo nessa situação, ser mãe de filho ou filha de negros significa vê-los em risco sempre.
A história do filme se passa na Inglaterra. A peça, no Brasil. A maternidade é universal. E Ninguém Sabe o Meu Nome usa o palco também como um tipo de útero. Ana Carbatti lembra ser apenas uma atriz, uma mãe. Ela já materializou o “objeto”. Sua força para mudar vem de outro seio. Mas a plateia que sair dali, agora com a carga dividida, tem a chance de criar esse “filho”: perceber o racismo como ele é para que inúmeros seres possam viver como eles são.