Em Vermelho, Branco e Sangue Azul (Red, White & Royal Blue, 2023), um casal se encontra algumas vezes. Se detestam, implicam um com o outro, mas são obrigados a conviver por uma série de circunstâncias, e então se apaixonam. Clichê até dizer chega, o lançamento da Amazon Prime emula um filme de 1934, chamado Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night), que inventou a comédia romântica como conhecemos até hoje. Na trama dirigida pelo mestre Frank Capra, a jovem milionária Ellie Andrews (Claudette Colbert) foge de casa para não obedecer o pai e não se casar com um figurão. A fugitiva conhece um pé rapado, o jornalista Peter Warne (Clark Gable, que foi a pessoa mais charmosa do mundo), e eles se apaixonam.
Vermelho, Branco e Sangue Azul segue a cartilha, apesar de um detalhe: o casal é formado por Alex, filho da presidente dos Estados Unidos, e Henry, o príncipe da Inglaterra.
A química entre os dois personagens, batizada por interpretações calorosas de Taylor Zakhar Perez e Nicholas Galitzine, colabora para o bom ritmo sem negar o que é: uma comédia romântica absurda, brega e cativante, daquelas onde o final feliz é avistado a quilômetros de distância. Tornou-se a estreia mais vista do streaming no mundo.
Pra mim, o gênero estava baleado. Em vez da inocência, os filmes que botaram o amor no centro da narrativa quando não se embrenharam entre o cinismo e o realismo na intenção de subverter a forma em busca de algo mais moderno, eram desleixados.
Uma Linda Mulher (Pretty Woman, 1990), por exemplo, aconteceria em 2023? A prostituta jovem apaixonada por um ricaço mais velho, larga a vida crua para viver sua história de amor. Já dá pra imaginar a galera que malhou Licorice Pizza tweetando “glamurização da prostituição… que vergonha!” Só que a ideia inicial era fazer um filme soturno. O estúdio botou o dedo. Com a Júlia Roberts no elenco, tinha de ser algo colorido, feliz, fantasioso. Garry Marshall fez de Uma Linda Mulher um clássico. A atriz chegou ao Oscar e saiu da cerimônia pronta para o estrelato, mesmo sem o prêmio. Estávamos nos anos 90.
Essa fantasia ainda é dona de coisas maravilhosas como A Primeira Noite de Um Homem (The Graduate, 1967), Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960) de outro gênio, Billy Wilder; Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), Harry & Sally – Feitos um Para o Outro (Harry & Sally, 1980), Mensagem Para Você (You’ve Got Mail, 1999), ambos bolados pela Nora Ephron, uma das poucas mulheres a defender comédias românticas atrás das câmeras, e com a rainha do água com açúcar, Meg Ryan, à frente delas. A fantasia amorosa atravessou a década de 90 junto com 10 Coisas que Odeio em Você (10 Things I Hate About You), também de 1999, O Diário de Bridget Jones (Bridget Jones’s Diary, 2001) e Embriagado de Amor (Punch-Drunk Love, 2002), provavelmente os últimos do gênero a influenciar os filmes posteriores. Fazendo vista grossa, daria pra incluir as adaptações dos livros da Jane Austen, como Razão e Sensibilidade (Sense and Sensibility, 1995) ou Orgulho e Preconceito (Pride and Prejudice, 2003) no pacote. Acontece que todos esses filmes subiram o sarrafo, influenciaram a linguagem e apresentaram outra visão. Tinha gente competente e interessada no que estava sendo feito.
Não dá pra dizer exatamente quando o tom realista, problematizador e cínico invadiu de vez o gênero. Mas o Brasil batizou Blue Valentine de Namorados Para Sempre e fez muita gente se roer de ódio no cinema. Cadê o final feliz? Aquela previsibilidade sumiu?
A trilogia do amanhecer começou como uma comédia romântica. O segundo capítulo puxou mais o lado amargo, e o final, já em 2013, com Antes da Meia Noite, foi a tampa no caixão. Celine e Jesse discutem como dois adultos. Os anos pesam, a tristeza e a responsabilidade se impõe como verdadeira opressão, e não há outro jeito de fazer uma relação dar certo senão olhando um para o outro sem rodeios.
Talvez, Nasce uma Estrela, do Bradley Cooper, um filme merecedor da dignidade que recebeu, tenha remexido as cinzas, embora falte muita comédia ao lado romântico. Como Eu Era Antes de Você, bem mais pura e mais triste, fez por merecer seu sucesso. E o recente Boa Sorte, Léo Grande, inverteu clichês, entregando um ótimo e corajoso filme. Três exemplos recentes de romances com comédia, e não a comédia romântica pura.
Pra mim, Vermelho, Branco e Sangue Azul refresca o gênero. Veja bem: o filho da presidente dos Estados Unidos, portanto, uma mulher casada com um latino, à frente da nação mais capitalista do mundo, está apaixonado pelo príncipe da Inglaterra!
O idealismo de Alex faz arder os olhos. Na direção oposta, a formalidade e passividade de Henry são o melhor tempero para tornar o romance impossível. A cena de enfrentamento, onde as verdades um do outro são expostas, e que também foi inventada lá em Aconteceu Naquela Noite, é muito bacana. A carga de inocência dos dois protagonistas dizendo frases tolas, cheias da mais pura vontade em botar o mundo abaixo por amor, tem o que há de melhor no constrangimento amoroso. Em algum momento, me lembrei de A Princesa e o Plebeu, de 1953, do mesmo cara que fez o épico Ben-Hur (pois é!!!), William Wyler.
O diretor de Vermelho, Branco e Sangue Azul, Matthew Lopez, aproveita a chance para criar um filme fácil de gostar. Ele extrai do livro de mesmo nome alguns momentos genuínos, como a cena de ano novo. Mas ao concentrar o romance entre dois homens no meio político, Lopez volta-se para a matriz de Aconteceu Naquela Noite para reforçar a necessidade do absurdo romântico, da magia dos finais felizes como um tipo de refino da realidade.
Essa esperta transformação daquilo que é ingênuo em um tipo de idealismo é, em certa medida, irônica porque as discussões sobre monogamia, patriarcado, sexualidade e toda sorte de elementos mundanos que invadiram a comédia romântica nos últimos tempos, exilaram o básico do gênero: o absurdo do amor nos faz acreditar nele.
Não que esses tópicos sejam irrelevantes. Não se trata disso. Porém a imaturidade, a pouca experiência de quem se apaixona pela primeira vez, a confusão, ânsia e o ridículo, também podem ser o começo, o meio e o fim de uma história. Vermelho, Branco e Sangue Azul não revoluciona o cinema por ser um filme gay. Seu grande feito vem do encontro de um amor impossível em um mundo manchado pelo possível.
O que aconteceu naquela noite entre Alex e Henry não mais precisa ser um segredo. O choro é livre. E por hora também pode ser feliz.