Ao ver Frank Lucas (Denzel Washington) usando um casaco de chinchila durante uma luta de boxe, o detetive Richie Roberts (Russell Crowe) se convence de que aquele homem negro pode ser um dos maiores traficantes de drogas dos Estados Unidos. “O Gângster” (American Gangster, 2007) se passa nos anos 60, durante a guerra do Vietnã, e narra a ascensão e queda desse personagem real, que usava os caixões dos combatentes para transportar uma heroína com 98% de pureza. “Nós fizemos isso muito bem… Quem diabo vai olhar no caixão de um soldado morto?”, relatou o verdadeiro Frank Lucas.
Dirigido por Ridley Scott, “O Gângster” não esconde as engrenagens narrativas de “O Poderoso Chefão” (The Godfather, 1972). Na primeira cena, Bumpy Johnson, o padrinho do Harlem e amigo de Malcolm X, diz para Lucas: “Esse é o problema da América”. O bairro, que é conhecido por ser um centro cultural e comercial dos afro-americanos, está sendo aniquilado pelo capitalismo. “Onde existia uma quitanda, agora tem supermercado. Onde tinha uma confeitaria, um McDonald’s!”, continua Johnson. É uma observação importante para mensurar o tamanho da história. Em vez de “acreditar na América”, como dito na abertura do filme de Francis Ford Coppola, aos negros coube a missão de resistir a ela.
Bumpy morre, e Frank Lucas se prepara para assumir o seu lugar. Sem dinastia, ele precisa empoderar sua família, se livrar dos intermediários no contrabando, e estabelecer um império de mais de 250 milhões de dólares às sombras da polícia.
“O Gângster” é genial – e até à frente do seu tempo – por bancar a história de um traficante negro como um contraponto à mafia americana e italiana, sem diminuir o peso racial carregado pelo personagem. Quando o detetive Roberts apresenta sua investigação, escuta do chefe: “um negro fazendo o que a máfia americana não faz?” Frank Lucas “era um homem rico. Mas não era um branco rico”. Ridley Scott respeita o material e aflora todas essas questões sem didatismo. Seu filme é sóbrio, com uma pulsante direção de arte, e um ótimo roteiro, escrito por Steven Zaillian, baseado no artigo de Mark Jacobson. Repare nas sutilezas para apresentar as motivações dos personagens, (Frank limpando a mesa no velório de Bumpy e Richie enfrentando a fúria dos colegas por ser honesto) sem sobrar informação, como na citada sequência de abertura ou nas cenas familiares. Richie Roberts não faz a linha do policial bom; é um homem com ética no trabalho, porém falhou em todo o resto. Já Lucas forjou sua moral em um universo tão diferente, que não pode recusar o trabalho. Se afirma ao inverter o destino subalterno e criar um tipo indecoroso de justiça social. Aliás, a trama envolvendo a recusa de Richie ao dinheiro encontrado em um carro abandonado tem significados maiores na dinâmica entre esses dois personagens.
À época em que foi lançado, “O Gângster” passou batido por premiações importantes, como o SAG e o Oscar. Mesmo com a competição afunilada entre “Sangue Negro” (There Will Be Blood, 2007), “Onde os Fracos Não tem Vez” (No Country for Old Men, 2007) e “Desejo e Reparação” (Atonement, 2007), Denzel Washington e Ridley Scott fizeram um trabalho que não poderia ter sido ignorado. Beira à perfeição a forma como o ator cria um personagem flutuante, sempre vagando entre a destreza e a ruína, em um flerte com a rejeição que independe da crueldade de seus atos justamente porque sua ascensão significa “um progresso que eles não querem.” O exército, a polícia e a política são instituições corrompidas. E “O Gângster” mostra que essa máfia também é um lugar de elite. Quando Michael Corleone (Al Pacino) batizou o filho na igreja católica, em meio a uma das mais brutais cenas de “O Poderoso Chefão”, nós vimos o mafioso ganhar uma benção. Frank Lucas foi preso na porta da igreja.
O casaco de chinchila foi comprado para sublinhar poder. Frank Lucas tinha dinheiro para pertencer àquele mundo. Mas quem vai ceder espaço se o seu custo é histórico?
Outras produções com o mesmo tema
Série: Godfather of Harlem, no Star+, sobre a vida de Bumpy Johnson
Álbum: American Gangster, de Jay-Z, inspirado no filme de mesmo nome.