Dizem que sou do contra, que gosto de ver o copo meio vazio e não meio cheio. Mas, e quando eu critico os que criticam alguma coisa, aí o que sou? Pensando algebricamente, sou positivo, afinal, como aprendemos na escola, menos com menos dá mais.
É exatamente isso que aconteceu com o Coringa, que eu vi há bem pouco tempo e que ainda está nos cinemas. Com quase todos com quem falei e em quase todas resenhas publicadas, o filme ficou devendo. Nessas análises, salvou-se o Joaquim Phoenix. E nem poderia ser diferente, ele brilha sempre, ele é o filme! Com a ajuda luxuosa da Lady Gaga.
Mas por que eu gostei tanto do filme no meio de tanto azedume, de quase todos que também assistiram? Por duas razões.
A primeira porque o Coringa é uma das expressões mais bem acabadas, nos filmes recentes, de uma representação que descola a verdadeira identidade de um indivíduo e atende aos ardentes desejos da plateia social que o acompanha. Quase uma fábula em que a massa realiza suas fantasias na persona que o Coringa projeta de si mesmo. Não vem ao caso os elementos pretéritos da sua vida que contribuíram para construir a máscara que ele veste. O que conta é o prazer delirante que ele inspira nos outros. Pensem por um momento no quanto a indústria cultural, ou melhor o show business tem sido pródigo na criação desse modelo. Afinal, “there is no business like show business”, que é a máxima na produção do espetáculo de consumo de massa. Portanto, a primeira razão é essa: o Coringa mostra essa máscara que esconde a raiz de sua identidade. Ocorreu-me um paralelo, entre muitos outros possíveis: foi o que aconteceu com Benedito Silveira, um homem simples e sofrido, que é transformado em Ben Silver, uma mercadoria para a indústria do espetáculo, na peça Roda Viva (Chico Buarque, 1968).
A segunda razão me traz de volta ao território em que atuo a maior parte do tempo, por várias décadas. Qual seja, o papel das marcas em nossas vidas, no mercado e na economia.
E de tudo que eu já vi nesse cenário, posso afirmar que há aquelas que sempre me incomodaram, mesmo que não confesse publicamente. Mas, ao lado delas, há marcas que contribuem autenticamente para alimentar nossos projetos de felicidade, para nos aproximar de um eu conscientemente mais desejado que lutamos para conquistar. Acredito que são aquelas que nos acompanham por mais tempo em nossa jornada, vida afora. São aquelas que o Martin Lindstrom, em sua tentativa de fazer um “brand detox”, não conseguiu abandonar. Quem quiser conferir, leia o seu livro: Brandwashed – o lado oculto do marketing (HSM, 2018). Vale muito a pena.
Essas marcas convivem conosco, dialogam conosco, acordam conosco, ajudam a nos dizer quem somos, do que gostamos e do não gostamos. Elas são aliadas e leais companheiras de viagem. Que não escondem quem somos. Ao contrário, revelam um pouco de nós para quem quiser nos conhecer melhor. Elas se encaixam perfeitamente no dito popular: diga-me com quem andas e eu te direi quem és. Quem me conhece melhor, conhecem algumas que me acompanham: OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), Gillette, o bairro do Cambuci, Estadão e Aveia Quaker.
Por isso, eu tendo a fugir das marcas-Coringa. Aquelas que mascaram um desejo que, muito provavelmente, não seria nosso, se pudéssemos sempre olhar com sensibilidade, desprendimento e honestidade para o que pode, de fato, nos fazer mais felizes. E aquelas que colam em nosso rosto a máscara de uma persona apenas conveniente e passageira. E que exigem investimentos, recursos, que com alguma dose adicional de lucidez, poderiam ser alocados em outras coisas. Caso contrário, vale o que Fernando Pessoa antevia na Tabacaria: “Fiz de mim o que não soube/ E o que podia fazer de mim não o fiz/ O dominó que vesti era errado/ Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me/ Quando quis tirar a máscara/ Estava pegada à cara”.
Já vi o filme duas vezes. Acho que vou mais uma vez!