

Num auditório Lumière completamente lotado, a abertura do Cannes Lions 2025 teve menos pirotecnia e mais reflexão. Tor Myhren, vice-presidente de marketing e comunicação da Apple, subiu ao palco não apenas para celebrar a Apple como Anunciante do Ano, mas para afirmar, com firmeza, algo que muitos queriam ouvir — e outros, talvez, temiam: “A IA não vai matar a publicidade, mas também não vai salvar”.
A frase pode parecer paradoxal, mas sintetiza um pensamento estratégico e realista sobre o impacto da inteligência artificial na indústria criativa. Myhren não ignora a disrupção causada por algoritmos. Pelo contrário, ele reconhece seu valor, mas insiste que o verdadeiro diferencial ainda está em mãos humanas. Para ele, a IA será um “braço biônico”, útil, poderoso, mas subordinado à mente criativa. E mente criativa, aqui, significa intuição, emoção, humanidade — coisas que não se programam.
A fala foi intitulada “Human After All”. E não por acaso. Myhren defende que a conexão emocional não nasce de lógica. Um algoritmo pode calcular padrões, prever comportamento, montar headlines perfeitas para CTR. Mas não sente. “Uma lágrima, para a máquina, é água e sal. Para uma pessoa, pode ser luto, saudade, amor, dor.” O marketing, portanto, não precisa apenas explicar. Precisa fazer sentir.
Myhren usou diversos exemplos para ancorar sua argumentação, como a campanha dos novos AirPods com função de auxílio auditivo. Ele contou a história do próprio pai, de 88 anos, que esqueceu seu aparelho tradicional e ficou impressionado com a funcionalidade dos fones. O comercial que promoveu a função começa com 40 segundos de sons abafados — uma decisão que, segundo ele, jamais passaria por um filtro algorítmico. Mas funcionou. O impacto foi real. As buscas por “auxílio auditivo” dispararam. Gente se identificou. Emoção superou lógica.
Outro case citado foi o clássico “Shot on iPhone”, que começou com fotos de usuários em outdoors e evoluiu para clipes de estrelas como Lady Gaga e Selena Gomez. E também o filme “Submerged”, que estreou junto com o Apple Vision Pro e foi inteiramente produzido usando o próprio recurso — um gesto de validação e demonstração criativa ao mesmo tempo. Myhren destacou ainda campanhas sobre privacidade digital, como o outdoor “What happens on your iPhone stays on your iPhone”, que marcou presença na CES, ironizando a frase clássica sobre Las Vegas.
Mesmo nos momentos mais performáticos, a Apple aposta em impacto emocional real. A instalação física da fictícia sede da Lumon Industries, série Severance, em plena Estação Central de Nova York, não foi apenas uma jogada de RP. Foi um presente sensorial aos fãs, que gerou comoção espontânea e engajamento massivo. Criatividade que extrapola o frame.
Com o filme “Someday”, estrelado por Pedro Pascal e dirigido por Spike Jonze para o AirPods 4, Myhren encerrou sua participação com outra provocação direta: “O mundo precisa de otimismo”. Para ele, criatividade humana ainda é a ferramenta mais potente que temos — e talvez a única capaz de nos tirar do ciclo reativo que a tecnologia, por si só, não resolve. “O melhor marketing faz você rir, chorar, se apaixonar. E isso não vem de um prompt. Vem da alma.”
O executivo encerrou sua fala com uma citação de Steve Jobs que, mais do que nostálgica, soou como diretriz: “Faça algo maravilhoso e divulgue. No ato de fazer algo com cuidado e amor, algo é transmitido. É uma forma de expressar nosso profundo apreço pelo resto da humanidade.” Em um mundo onde tudo tende a ser automatizado, esse tipo de pensamento não é apenas poético — é estratégico.
O que fica claro é que a Apple não está apenas reagindo à tecnologia, mas integrando-a com intenção. A IA será usada — claro — mas não como atalho para substituir o criador. E sim como alavanca para elevar o craft, ampliar acessos, testar hipóteses e acelerar execuções. A diferença estará em quem comanda. No Cannes Lions 2025, Myhren deixou claro: a criatividade humana ainda é o que move o jogo. O algoritmo pode até entrar em campo, mas a alma da campanha ainda depende de quem segura a caneta — ou, no caso, desenha o código com propósito.