Retratos do futuro: entre uma espécie interplanetária, colapsos ambientais e um futuro distópico

Paisagem futurista com cidades espaciais e naves. Paisagem futurista com cidades espaciais e naves.

A ficção e a realidade possuem uma relação íntima e de retroalimentação. 

Enquanto a imaginação fomenta a construção de narrativas para projeção do futuro, estas também têm seu papel na construção dos imaginários e expectativas da sociedade sobre o desconhecido. Com isso, surgem as narrativas de ficção e de ficção científica, “a literatura mais importante da história do mundo, porque é a história das ideias, a história de nossa civilização dando à luz a si mesma”. As aspas são de Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451 (1953), que, em minha singela opinião, deveria substituir Laranja Mecânica (1962) para formar, juntamente com 1984 (1949), de Orwell, e Admirável Mundo Novo (1932), de Huxley, a tríade distópica; não por demérito da Laranja, que fique claro!

É interessante ver como a ficção veio representando os anseios e preocupações das pessoas ao longo de diferentes períodos históricos, como o surgimento da criação artificial, com o conhecido Frankenstein (1818) ou filme Metropolis (1927) no período clássico da ficção científica, ou uma perspectiva otimista da era dourada, que prontamente foi substituída pelo medo da era atômica.

Olhando para futuros prováveis ao invés de como o passado representava o presente (!), dois pesquisadores e uma pesquisadora suecos (Brozovic, Carlborg e Hasche, 2025) resolveram analisar como a literatura de ficção projeta o que será da humanidade.

A partir de 245 romances indicados ou vencedores dos prêmios Hugo e Nebula entre os anos de 1999 e 2024, chegaram a 42 deles que traziam futuros que não transgrediam leis da física e/ou incorporavam elementos que reduziria sua plausibilidade (como magia, por exemplo).

Nos estudos de futuros (no plural), um framework utilizado para pensar nas possibilidades considera, em tradução livre do artigo original, considera:

Infográfico sobre tipos de futuros: possível, provável, preferível.

Então, magias e portais metafísicos à parte 🙂 🧙🏻‍♂️, a partir destes romances, buscaram identificar temáticas comuns quando da representação do futuro da humanidade, isto é, verificar a existência de certa latência quanto a aspectos políticos, econômicos, sociais, tecnológicos, ambientais e jurídicos que possam conduzir a sociedade a uma ou outra direção. 

Sim, pra quem vem da administração/marketing, eles identificaram similaridades nas projeções de futuro e aplicaram a velha e boa Análise PESTEL (ou PESTAL, ou PESTLE) – com link para quem não conhece – para estimar como será o mundo em um futuro com tempo indeterminado.

Que futuros a literatura de ficção conta?

O grupo chegou a quatro cenários recorrentes – Expansão do Sistema Solar, Futuro Cibernético de Alta Tecnologia, Sociedade Pós-Contração e Futuro Distópico -, para os quais compartilho algumas das publicações usadas como exemplo e faço singelo complemento com exemplos do audiovisual. Válido dizer que os cenários não são excludentes e boa parte destas histórias abordam mais de uma temática; no artigo, porém, os autores consideraram o tema prevalente.

Colônia futurística humana em Marte, planetas ao fundo.

EXPANSÃO PELO SISTEMA SOLAR

Neste cenário, a humanidade se espalhou por todo o Sistema Solar, colonizando planetas, luas e cinturões de asteroides. A expansão é vista em graus variados, desde fases iniciais até sociedades plenamente estabelecidas fora da Terra.

Há fragmentação política com múltiplas entidades governamentais em conflito ou alianças instáveis, como as tensões entre a Terra, Marte e a Aliança dos Planetas Exteriores em Leviathan Wakes (2011), de James Corey. 

Nesta representação de futuro, os distintos grupos de humanos, adaptados aos diferentes ambientes, também passariam a exibir mudanças físicas, culturais e linguísticas, além do reforço do senso de pertencimento ou planetaridade, que, neste caso, não trata de uma visão única do planeta Terra, mas um equivalente ao que conhecemos como nacionalismo.

Dentre os títulos considerados, estão:

 

No audiovisual, um bom exemplo deste conflito intergaláctico (sem a necessidade de usar midi-chlorians a Força) é a série inspirada pelo livro Leviathan Wakes, The Expanse (2015), que acompanha tensões políticas e disputas de poder entre a população espalhada pela Terra, Marte e os cinturões de asteroides entre Marte e Júpiter.

Outra narrativa neste sentido é Moonhaven (2022), que se passa em uma colônia utópica construída na Lua, criada para testar soluções que possam salvar uma Terra em colapso ambiental. O conflito da série, porém, pende mais para as relações políticas e de poder entre a população no planeta e no satélite natural.

Cidade futurista com pessoas, tecnologias avançadas e hologramas.

FUTURO CIBERNÉTICO DE ALTA TECNOLOGIA

Explora uma sociedade onde a humanidade alcançou avanços tecnológicos radicais, como inteligência artificial avançada, transumanismo, pós-humanismo e singularidade. Um mundo em que há domínio da tecnologia em todas as esferas, desde biotecnologia, computação quântica, realidade aumentada, até inteligência artificial.

Temas como a regulação e questões éticas sobre o uso de tecnologias, direitos de inteligências artificiais e proteção contra abusos de poder são questões sociais (e jurídicas) que aparecem nesta representação

O estudo sueco traz como exemplos:

Fora de seu recorte temporal (1999 a 2024), podemos facilmente encaixar os clássicos Snow Crash (1992), de onde veio o termo Metaverso, como uma dimensão gráfica compartilhada controlada por megacorporações, inteligências artificiais e sistemas de segurança, e Neuromancer (1984), de onde surgiu o termo Ciberespaço.

No audiovisual, esta é uma temática em voga graças às IAs conversacionais e esta proximidade afetiva entre humanos e seres artificiais. Bons exemplos seriam Ex Machina (2014), A.I. – Inteligência Artificial (2001) (“I see synthetic people 👀”) e, claro, Blade Runner (1982).

No campo interativo, o game Detroit Become Human (2018), em que em que androides atingem a singularidade e, munidos, agora, de sentimentos, lutam por autonomia em uma Detroit futurista.

 

SOCIEDADE PÓS-CONTRAÇÃO (ou pós-colapso)

Caracterizado por severas crises ambientais que forçam a humanidade a se adaptar a condições climáticas mais duras e escassez de recursos, trazendo instabilidade política, com tentativas de criação de novos modelos políticos para enfrentar crises ambientais. A tecnologia, aqui, é às vezes avançada, mas muitas vezes interrompida ou regressiva, coexistindo com biotecnologia dominante e adaptação a realidades ambientais restritas.

E, claro, podemos considerar cenários que retratam o momento logo após o colapso, no melhor estilo MadMax (1979), ou já as novas configurações sociais (e relativamente estáveis) que se formaram nesta nova realidade, como Silo (2023, adaptação de conto de 2011) ou Elysium (2013), com  cidades fundadas em regimes fragmentados, conscientização sobre novas classes sociais habitantes deste universo ou, de forma mais positiva, comunidades organizadas sob princípios de cooperação mútua.

Dentre os livros trazidos como exemplo:

No audiovisual, o já citado Elysium (2013), retratando um futuro em que a elite vive em uma estação espacial ultra tecnológica enquanto a população da Terra enfrenta miséria e violência.

Antes deles – e sem entrar no mérito do roteiro (e, sim, eu uso travessão no meio de frase muito antes dos GPTs 🙂) – já visualizamos o planeta Água em Waterworld (1995):

Cena futurista de cidade grande com arranha-céus.

FUTURO DISTÓPICO

Uma das abordagens preferidas da ficção, traz a visão sombria e negativa de um futuro com sociedades totalitárias, controle estatal intenso e colapsos sociais. Temos estados altamente repressivos e centralizados, com governos que manipulam e controlam intensamente a vida dos cidadãos, em sociedades marcadas pela perda de direitos civis, vigilância constante e exclusão social.

Entre 1999 e 2024, os autores exemplificam com livros como:

Mas, claro, não podemos deixar de reforçar os já citados 1984 (1949), Fahrenheit 451 (1953) e Admirável Mundo Novo (1932), todos com suas respectivas adaptações para o audiovisual, respectivamente lançados em filme 1956/1984, 1966/2018 e 1980/1998, com série adaptada de 2020.

V de Vingança (2005), baseado em uma graphic novel dos anos 80, traz uma linda construção de roteiro na adaptação em filme.

E, como roteiro original, Distrito 9 (2009), dirigido por Neill Blomkamp, foge da representação *humanos que mandam mais contra humanos que mandam menos* para colocar nossa espécie, em geral, como a opressora de alienígenas refugiados vivendo em guetos na África do Sul.

Junto com o contemporâneo Avatar (2009), traz este curioso ponto de vista em que os humanos impõem sua realidade a outras espécies – imaginem se um governo passasse a classificar grupos de pessoas como ‘aliens’ em um processo de desumanização? 👀

Outro alerta interessante é o trazido por Gattaca (1997), um futuro em que pessoas são classificadas pela genética e a segregação se dá por discriminação biológica, não muito diferente do determinismo dos dias atuais.

Mas, por que narrativas parecem preferir representações de futuro distópicas?

A ficção, em essência, não tem como premissa retratar realidades opressoras e destrutivas. Então… por que a maior parte das histórias traz este tipo de provocação?

Uma distopia, ao contrário da utopia, apresenta uma visão negativa do futuro, oferecendo um mundo onde as condições humanas são levadas a extremos de opressão e desespero, geralmente como uma forma de crítica das tendências sociais, políticas e tecnológicas presentes.

Nos contextos de produção, podemos considerar diferentes motivações para tal intencionalidade. Queria trazer duas: a primeira, o uso da arte como um sistema de alerta, a tangibilização de consequências, até então, intangíveis. 

Contágio (2011), foi quase um documentário da época que a gente lavava pacotinho de batata palha com detergente:

Tais materializações, ainda que imaginativas, também servem como ponto de partida para discussões a respeito da ética e dos caminhos possíveis na relação tecnologia e humanidade, aproveitando-se da partícula fundamental das histórias (“e se?”), algo explorado por este artigo de Sara Chan no Journal of Medical Ethics e por esta discussão ainda mais direcionada sobre manipulação genética usando justamente Admirável Mundo Novo como fio condutor – The Use and Misuse of Brave New World in the CRISPR Debate, publicada no principal periódico científico sobre a tecnologia CRISPR de edição de genes.

Isto é particularmente relevante para situações em que mudanças ocorrem não como uma ruptura, mas de forma gradual e com pontos de não retorno, como as mudanças climáticas (como o termo aquecimento global mais prejudicou do que ajudou, né?)

Neste sentido, a ficção prepara o público para imaginar riscos/benefícios e modela metáforas que jornalistas e políticos utilizam, podendo tanto ajudar quanto atrapalhar a comunicação científica (nos exageros ou simplificações).

Outro motivo por trás destas abordagens é a própria natureza de produto (no caso, o produto midiático, o livro, o filme, a série, o game). Nosso cérebro evoluiu para processar principalmente emoções de valência negativa, como medo ou raiva, uma vez que são mais relevantes para o único sentido que sabemos: continuar vivos. Estímulos que exploram tais sensações têm maior poder de capturar a atenção e, consequentemente, terem maior consumo (nenhuma fake news fala de cachorros fofinhos).

Estas projeções vindas da ficção são fundamentadas em análises de futuros (no plural) observando o caminhar do presente, enquanto reciprocamente também podem afetar a percepção da sociedade com relação a si mesma e à tecnologia, podendo resultar até em uma profecia autorrealizável, em que os desenvolvimentos tecnológicos e a interpretação social acabam por acontecer porque assim foram contadas.

Assim, não deveríamos olhar a ficção como um exercício de projeção livre e descompromissada, mas como possíveis retratos de cenários futuros plausíveis… ou, até o momento, teoricamente impossíveis, emprestando a terceira lei de futuro de Arthur Clarke, “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.

Principalmente, as provocações trazidas pelas distopias funcionam como a história que não aconteceu. Se estudamos a história para não repetirmos os erros no futuro, o autor de Fahrenheit 451 dizia que “eu nunca escrevi sobre o futuro, eu escrevo para preveni-lo”.

E, ainda:

You must stay drunk on writing so reality cannot destroy you.” 

(texto escrito integralmente por um humano)