Escrevo esse texto para os meus alunos, subitamente arremessados para fora da sala de aula, enquanto essa pandemia demora a passar. E vai demorar bastante. E o mundo já não é mais o mesmo de antes, embora o novo mundo ainda não tenha se desenhado, e estejamos todos como que num barco à deriva, quase sem metáfora. É um tempo de deriva global.
Escrevo esse texto para que vocês leiam, e pensem que agora o nosso jogo não é o mesmo. O que nós estamos a fazer aqui não é mais algo normal, mesmo que tentemos dar ao nosso trabalho ares de normalidade — e admitindo que é isso o que se deve tentar fazer, mesmo sem grande chance de êxito.
Pode-se dizer que agora a nossa relação passa, além da perda do chão da normalidade, por outras perdas mais concretas. A primeira é a da proximidade dos corpos, e a facilidade de olhar no olho. A proximidade dos corpos energiza a comunicação, por que ela nos coloca em cena. Veja que eu não preciso falar sobre isso, todo mundo sabe como é. É isso o que perdemos, por não termos os corpos no mesmo lugar. E o olho no olho, que desconcerta, mas que permite a vocês falarem em silêncio, enquanto eu gasto a minha saliva.
Mas há outras coisas acontecendo, que são de certa forma ganhos. Eu agora entro na casa de vocês, e vocês na minha. Eu agora, muito mais do que antes, participo do tempo de vocês, e vocês do meu. Não só vocês, mas todos, em boa parte do mundo, participamos cada vez mais do tempo, e da intimidade, uns dos outros. Por que estaremos muito em casa, quase o tempo todo, e por muitos meses — provavelmente — estamos de certa forma na mesma casa. Juntos, talvez como nunca.
E é nesse momento que eu penso que o que nós podemos nos dizer, quando estivermos online, pode ser da ordem de uma intimidade reconquistada. Não é preciso que nos contemos os nossos segredos. Vocês não precisam saber dos meus problemas, nem quero saber dos de vocês — a não ser no interesse daquilo que afeta a organização do nosso trabalho.
Eu sempre achei que a diferença da educação a distância é a ausência do silêncio. Por que a tecnologia que se usa nesses modos de ensinar é geralmente assíncrona, não acontece uma coisa que é muito importante na comunicação, que é a hesitação. O silêncio, o tempo morto. Ora, por estarmos nós todos juntos nesse momento de privação de liberdade, é como se o silêncio tivesse sido reconquistado, justamente enquanto estamos nos vendo de longe.
E é por isso que se tornou oportuno dizer a vocês algumas coisas:
- percebam que agora é hora de aprender, justamente agora que parece mais duvidoso do que nunca justificar o estudo, porque o que resta do aprendizado, agora, é a sua essência: aprender por que se é humano, e o humano é humano porque aprende;
- agora é hora do aprender puro, livre. Desejo que aos poucos, cautelosamente, nos libertemos um pouco das amarras da formalidade. Que venhamos a assumir uma relação de compromisso com o saber, como se retornássemos aos tempos da universidade original, e das velhas academias, dos liceus, dos colégios antigos. O grande retorno do apreço à boa pergunta, não tanto à boa resposta. Cautelosamente.
- a ciência está viva, agora, mais do que nunca. Num tempo em que todos os autoritarismos parecem prestes a emergir, e parecem desejar controlar tudo aquilo que vive, nesse momento em que as instituições da paz parecem ruir mundo afora, é preciso lembrar que a ciência nasceu desse tipo de lodo, combateu a ignorância e o arbítrio, justamente quando pareciam invencíveis, e os conquistou. Depois se perdeu de si mesma. Agora, pode ter a oportunidade de reviver.
- isso que a gente está fazendo é super importante. Um dia isso vai ficar claro.
Até a próxima.
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Muito bom post André. Gosto bastante da “facilidade de olhar no olho”, algo que a maioria ainda não percebeu. Uma aula, ou palestra por video não é uma repetição da experiência real, em video. É outra experiência. Mais uma ferramenta para o compartilhamento do conhecimento. ;)