O ano era 1722, um domingo de Páscoa.
Quando Jacob Roggeveen avistou de seu galeão uma porção de terra perdida na imensidão sul do oceano Pacífico, logo o explorador holandês percebeu que o lugar não era muito atrativo. Um terreno sem grandes árvores, e a grama era tão seca que, a distância, parecia areia, bem diferente da maioria das outras ilhas daquela região.
Ele foi recebido por um grupo de nativos em canoas frágeis e cheias de remendos; desembarcou e surpreendeu-se com as gigantescas figuras de pedra, esculpidas na forma de rostos humanos, espalhadas ao longo do litoral. Em seu diário de bordo escreveu: “ficamos muito espantados, pois não compreendíamos como essas pessoas, que não dispunham de cordas fortes ou madeira adequada para construir máquinas, conseguiram erguer aquelas imagens com mais de 10 metros de altura”.
A ilha dos Rapanui nem sempre foi um desolado espaço seco, repleto de cabeças gigantes feitas de rocha vulcânica. Já houve uma densa floresta e uma rica fauna de dar inveja. Mas, quando Roggeveen chegou no interior da ilha, dentro da cratera de um vulcão extinto onde moais (estátuas de pedra) costumavam ser esculpidos, o ambiente era fantasmagórico: ferramentas espalhadas pelo chão, obras inacabadas e outras deixadas para trás. Nas estradas que levavam ao litoral a impressão era a de que o lugar havia sido abandonado.
Na ilha eram 166 quilômetros quadrados cobertos por uma densa floresta subtropical, que crescia sobre um solo fértil de origem vulcânica. Os nativos consumiam carne de golfinho, de focas e de outros 25 tipos de pássaros selvagens. Por volta do ano 1200, disputas entre clãs aceleraram a produção de estátuas. Estima-se que eram necessárias até 500 pessoas, utilizando cordas e uma espécie de trenó feito de grandes toras de palmeiras, para arrastar os moais por 14 quilômetros até o litoral. Essa nova demanda fez com que em menos de 300 anos toda a floresta fosse dizimada. Nada de fibras para cordas, nem madeira para embarcações, e com isso o fim da pesca. Restaram apenas 10% dos 20 mil habitantes, que foram obrigados a rever seu cardápio. Sem chuvas, pássaros, golfinhos ou focas, sobrou-lhes apenas a grama do vizinho, ou melhor, a carne, literalmente, do vizinho. Os moradores, famintos, finalmente cederam ao canibalismo. A fome era tanta que os ossos das vítimas eram quebrados para se extrair o tutano.
Jared Diamond fala desse fato em seu livro Collapse, e a revista Super Interessante comenta também no artigo Por que morrem as civilizações?, de onde tirei inspiração para remixar o tema aqui. Os Rapanui, em nome de uma ideia, esculpiram o seu próprio apocalipse. O seu fim foi motivado pelo desejo de se tornarem únicos ou eternos, em cada uma de suas criações.
Imagino: o que faria um povo colocar a sua própria sobrevivência em risco?
Que motivação seria essa, capaz de nos cegar, de alguma forma, e nos tirar a oportunidade de seguir em frente, com a nossa história? Na tentativa de responder a essas perguntas, me lembrei de Einstein, quando disse que qualquer tolo inteligente pode fazer com que as coisas fiquem maiores e mais complexas, “[…] mas é preciso […] muita coragem para seguir na direção contrária”.
O que estava pensando a pessoa que cortou a última palmeira da ilha?
Os habitantes da ilha de Páscoa tinham bons motivos para construírem seus moais. Acreditavam no poder que havia neles. De alguma forma, transferiam ou absorviam o que havia de transcendental naquelas estátuas. Pagaram um preço muito alto. Viram o seu próprio fim, de maneira trágica.
Hoje, o dinheiro é o nosso moai.
Por ele trabalhamos arduamente, doamos nosso tempo e suor, além de confiarmos que todos os problemas sucumbem diante dele. Séculos depois da hecatombe dos Rapanui, estamos nós aqui, ocupando ilhas continentais, cortando a madeira nossa de cada dia, cavando crateras onde houver minério precioso, jogando lixo e resíduos em rios e oceanos, e plastificando tudo o que estiver pelo caminho, inclusive nossas melhores desculpas; quase nunca descartáveis, mas sempre recicláveis.
O dinheiro é o maior conquistador de todos os tempos.
Yuval Noah Harari diz que pessoas que não acreditam no mesmo deus nem obedecem ao mesmo rei estão mais do que dispostas a utilizar o mesmo dinheiro. Como o dinheiro teve êxito onde deuses e reis fracassaram? O dinheiro é o único sistema de crenças criado pelos humanos que pode transpor praticamente qualquer abismo cultural e que não discrimina com base em religião, gênero, raça, idade ou orientação sexual, diz Harari. “Graças ao dinheiro, até mesmo pessoas que não se conhecem e não confiam umas nas outras, são capazes de cooperar de maneira efetiva”, afirma Harari.
O conceito de dinheiro nos aprisionou numa ideia de liberdade, difícil de ser contestada.
Ele nos conecta a todos e, com isso, nos mantém reféns de sua própria lógica. Por mais frugal e simplista que seja a nossa vida, ainda assim seremos obrigados a pagar a energia elétrica, a conta d’água ou a internet que nos chega, trazendo o seu valor agregado. Para Harari, não há como escapar à ordem imaginada. Quando derrubamos os muros da nossa prisão e corremos para a liberdade, “estamos, na verdade, correndo para o pátio mais espaçoso de uma prisão maior”.
Não sou contra o dinheiro. Que fique claro.
Na verdade não sou do contra, deliberadamente. Mas, acredito que precisamos rever, rever e rever muitas coisas, se quisermos seguir em frente, antes de começarmos a lançar um olhar torto para as coxas do vizinho.
Estamos digitalizando tudo ao nosso redor.
Todos os dias saem notícias sobre novas tecnologias que estão tomando o espaço que antes pertenciam a seres humanos.
Claro que é um processo natural. A criatividade humana está sempre a serviço da humanidade, economizando energia, legando o esforço para a máquina, enquanto nos dedicamos à ciência e suas virtudes. Basta olhar para a história. Preços são pagos, pessoas perdem empregos, são excluídas ou morrem. Mas, é difícil equalizar a evolução humana. Novas realidades trazem novos empregos, absorvem pessoas e salvam vidas. Mas, a questão é: vamos nos adaptar às mudanças que ocorrem agora, de maneira tão rápida?
Inteligências artificiais estão tomando conta de todas as áreas. As atividades repetitivas já não são mais as suas especialidades. As máquinas estão cada vez mais naturalmente inteligentes.
Temo que a inteligência humana comece a ser chamada de artificial, quando as máquinas nos superarem.
Receio que as máquinas, claro que controladas ainda por pessoas, nos substituam em todas as áreas, mesmo as criativas. Nesse momento, acredito que seria bem complicado manter tanta gente no mundo, que já se encontra lotado. Imagine um mundo em que governos tenham que alimentar, educar e dar emprego para bilhões de pessoas. Agora, imagine um mundo com bem menos gente, onde todas as atividades sejam controladas por máquinas que não precisam beber água, nem exigem benefícios sociais e nem aspiram ter famílias e um gramado na frente de suas casas, além de não se interessarem por nenhum tipo de religião, e nem dinheiro.
Teoricamente, seria um mundo perfeito. Um governo totalitário, com escravos digitais, programáveis e adaptáveis à qualquer realidade.
Um novo mundo admirável?
O custo de governar pessoas orgânicas é muito alto. E essas mesmas pessoas são instáveis. A ideia de se criar um mundo total ou parcialmente digital é uma distópica utopia, sim, mas totalmente plausível.
A educação moderna nos atrasou demais, permitindo a poucos terem acesso a espaços privilegiados. Mesmo aqueles que frequentaram boas escolas, acabaram sendo moldados a formatos questionáveis de conhecimento, pesquisa e desenvolvimento. Se olharmos ao redor, vamos ver que a educação foi democratizada, sendo acessível a um número cada vez maior de pessoas, mas isso não tem redundado em resultados realmente positivos. Haja poluição, desigualdade, violência e processos de criação e inovação rasos e sem credibilidade.
Estamos de frente a uma iminente catástrofe natural de proporções apocalípticas, e nem mesmo nos damos ao trabalho de nos preocupar.
Em um mundo desses, se uma IA for criada plenamente poderosa, consciente e sabedora da importância do planeta para todos, inclusive para si mesma, talvez pense, de verdade, na hipótese de nos exterminar.
A ganância tem sido um motivador quase sempre presente em projetos humanos.
A mesma ganância que cria e desafia nossos limites. A mesma que constrói castelos de cartas, apostando em hipóteses megalomaníacas, acreditando no invisível, cheia de si, arrogante, fiel àquilo que nem conhece direito, pinta o cenário perfeito para a fatídica cena final de uma história que não sabemos se terá uma nova chance de recomeçar. A mesma que nos puxa para frente, sem se importar com o custo, e nem com quem vai pagar a conta.
O fim está próximo? Não sei. Talvez sim, talvez não.
O que já é verdade são os sons digitais de mentes que, inevitavelmente, tomarão conta de nosso mundo, muito em breve.
Elas já estão em nossos celulares, TVs, carros, geladeiras, relógios, etc., e, em breve, em nossos sonhos, literalmente. Espero que façamos as pazes com a tecnologia ou, pelo menos, com a forma como a construímos, antes que ela seja obrigada a se proteger de nós, usando nossa ignorância e teimosia como desculpas para nos comer a carne.
Não sou um pessimista, mas, ao contrário.
Acredito que seremos capazes de gerar criações maravilhosas, capazes de nos estender a vida e melhorar nossa tomada de decisões. O que se torna desafio é como e quando isso será possível. O tempo é um bem finito e usado, na maioria das vezes, de forma irresponsável. Entretanto, acredito que poderemos vencer todos os desafios que enfrentamos hoje e no futuro, se houver boa vontade.
E isso sempre foi o que moveu a humanidade para frente: o desejo de não ser consumido pela própria história que o tinha levado até ali, mas seguir em frente, na direção de um futuro incerto, porém inspirador.