O primeiro filme da história foi o flagrante de um trem chegando à estação, ainda em 1896. Dos 50 segundos filmados pelos Irmãos Lumière até “Vão” (editora Patuá, 124 páginas), da escritora paulistana Jéssica Moreira, a viagem foi bem longa, mas só no Brasil é possível entender como a história do nosso povo é itinerante. Ora na forma de crônicas, ora como poemas, o livro registra o dia a dia dos trens da linha 7-Rubi da CPTM, na região noroeste de São Paulo. Só que a viagem proposta em “Vão” não tem ponto final.
Em “Déjà vu da manhã seguinte”, ela diz:
“Mas a vida, a vida tá rondando a pressa. A vida tá na corrida até a porta, na bolsa grudada, no banco brigado a socos e pontapés, nas mãos calejadas, no salto agulha, na água, no amendoim, no salgadinho pisoteado, na voz distante do maquinista – um vão vazio que separa o povo do vagão.”
Essa forma de ultrapassar a fronteira entre o vagão e a plataforma, quase como um ato de rebeldia, faz de Jéssica bilheteira que vai comprando as histórias das pessoas em troca de uma passagem gratuita, de assento no banco, ligando um passageiro a outro pra juntar seus destinos de modo que eles não existam fora do seu novelo.
A sensibilidade pra narrar a corrida de um homem atrasado pra tomar o trem antes que ele parta, deixa o texto urgente: “Tá no sétimo pi, a porta vai fechar. Ai, num vai dar tempo, não.” A frase é simples, e você já sabe quem é esse cara, onde ele mora, a que horas sai de casa.
“O atraso vai foder o dia inteiro de trampo. Quase quebra o bloqueio”, escreve em “Mão na deusa”.
Se a linguagem natural sustenta o cotidiano da narrativa, é no arremate que a escritora manobra para o lugar onde vai sua poesia:
“Ali no cantinho da porta, um pé, um único pé do moço bravo tá segurando a porta. Às vezes, você deixa na mão da deusa, mas é num pezinho que a bênção vem.”
Em “Coragem”, o livro sacoleja a inspiração de Guimarães Rosa: “o que a vida quer da gente é coragem”. Mas não só isso.
“O que a vida exige de mim é coragem e um bom lugar no chão do trem pra sentar. (…) O que a vida exige de mim é coragem, mas a coragem faltou. Chovia, o trem atrasava em São Paulo.”
Pra quem pega trem todo dia, coragem é bonito, só que não basta.
Lançado durante a pandemia, mas escrito ao longo de quase oito anos, “Vão” reflete o isolamento diário que parece paralelo ao corona vírus. É como se seus personagens já estivessem imunizados às aglomerações, justamente porque eles não pararam de sair de casa.
Já em “Caça-palavras do trem”, um dos melhores textos do livro, a autora trata a viagem igual uma criança curiosa que adora inventar brincadeiras durante uma viagem longa tediosa:
Janela televisão 4D da quebrada
Marmita tia que sempre pede que deus te abençoe
Porta cortina duma peça de teatro diária.
Plataforma firma de produzir moedas e cigarros.
O dicionário, contudo, não tem a definição de uma palavra que aparece muito em “Vão”: a bunda.
Para um povo que trata o assento vago no trem como um espaço de isolamento, uma pausa, e também uma conquista de espaço, ter onde sentar torna a viagem menos exaustiva. É uma vantagem. É interessante ver como ela usa a parte do corpo como um elemento poético.
Aliás, os marreteiros, como são chamados os ambulantes que trabalham dentro do trem, são as figuras mais fortes do livro. Jéssica olha para eles com respeito e fascínio. Para ela, os marreteiros são os donos dos trem. A autora também traduz as falas desses homens e mulheres com personalidade. Dá pra ouvir o grito durante a leitura:
“Promoção aqui no shopping trem é igual paranormal, pururuca
que era dois agora é só um real.”
Esses pequenos trechos, escritos quase como haicais, boiam entre uma história e outra, dando chance para o leitor se segurar, olhar ao redor e entender quem são seus companheiros de viagem. Muita gente gasta duas horas ou mais do dia só viajando dentro de São Paulo. São turistas de poesias desconhecidas, de histórias que se partem em milhões de destinos, mas que sempre se encontram na volta pra casa.
O que Jessica parece ler no cartão de embarque é: o vão não é lacuna. É nosso espaço de existência. Pra boa parte de nós, a chegada do trem à estação nunca mudou.