Elizabeth Costello, de J. M. Coetzee, é composto por oito textos escritos pela personagem que dá nome ao livro. Fracassada, já idosa, ela discorre palestras e escreve ensaios sobre o tempo, a vida e a morte. Costello é alter ego de Coetzee. E também um livro que lembra o leitor de se tratar exatamente disso.
A escolha do diretor e dramaturgo Leonardo Ventura para encenar o texto em Elizabeth Costello, em cartaz no Centro Cultural da Fiesp, em São Paulo, foi não aliviar sua carga. Ventura dobra a aposta, volta-se para A Última Gravação de Krapp, de Samuel Beckett, e abandona a atriz Lavínia Pannunzio dentro de um labirinto repleto de falsas saídas.
Sozinha, como Krapp também esteve/ainda está, Costello usa um gravador para condensar suas memórias e atiçar o tempo presente. No que crê? Por que crê? De onde vem o desejo que parece condenar antes de estar completamente formado? No palco, essa sucessão de dúvidas está desmembrada em tempos narrativos diferentes, pontuados pela iluminação. Ora vemos Costello, ora vemos personagens de seus livros, ora vemos Lavínia Pannunzio.
Sim, porque é a própria atriz que recebe o público, abrindo as portas do Mezanino. Calma, ela repete algumas orientações, como desligar o celular; lembra os nomes dos profissionais responsáveis pelo espetáculo, e diz que vamos ler Elizabeth Costello. Seu jogo cênico com a plateia é levado ao limiar entre real e ficção, adensando o Teatro não só como local, mas como personagem e tempo. Em um dos momentos mais impactantes do espetáculo, Lavínia se move evocando Vênus de Milo, a famosa estátua de Alexandre de Antioquia, e discutindo enfaticamente sobre toda ordem de questões até que… a cena é cortada. A atriz vai tomar água. Libera a plateia a fazer o mesmo. E então, sem aviso, retorna. É um espetáculo que lembra o público de se tratar exatamente disso para dialogar com os outros “eus” do teatro, sugando das tragédias gregas e Brecht a quebra de uma ilusão, um estranhamento e afastamento preparados para transformar o espectador. Atriz talentosíssima, Lavínia Pannunzio segura esse touro pela unha: não complica o suficiente para impedir o acesso de quem assiste, embora seja necessário criar uma zona afastada de qualquer intimidade, e nem deixa o público amansado. A voz, o timbre e o corpo estão milimétricos, à espera de uma explosão que propositalmente nunca vem. É um trabalho muito impressionante porque conecta todas as propostas, os significados lançados pela dramaturgia e direção concisa de Ventura e do texto de J. M. Coetzee, principalmente servindo como ponto de encontro entre teatro e tempo, realidade e literatura, pausa e eternidade, história e fracasso.
Sobretudo, porque Elizabeth Costello não é um ensaio do tipo literário, como podemos ler em alguns dos textos presentes no livro. Também não parece aquilo que acontece antes de alguma estreia, por exemplo. De alguma forma, essa mulher em cena gravando suas memórias em uma tentativa de apreender o passado para então falar com ele e sobreviver a ele, nos faz ver através das possibilidades: Elizabeth Costello é personagem e também não é. Pode ser espetáculo ou não. A plateia julga, mas pode só ouvir a gravação. Como o próprio Samuel Beckett escreveu, quem é pode domar “este monstro de duas cabeças, danação e salvação – o tempo”?