Caso Havaianas: a crise de imagem e a semiótica da polarização digital

Entenda a polémica das Havaianas com Fernanda Torres: cronologia, números do boicote e os factos sobre o vídeo do “pé direito” num resumo informativo e imparcial.
Chinelo Havaianas preto com logo branco. Chinelo Havaianas preto com logo branco.

A campanha de fim de ano da Havaianas, protagonizada por Fernanda Torres, transcendeu o escopo de um mero ruído de marketing para se tornar um estudo de caso paradigmático sobre a “guerra cultural” no ambiente corporativo brasileiro.

A controvérsia tem o foco na subversão da clássica e popular expressão “entrar (no ano novo) com o pé direito”, interpretada por grande parte do público e figuras políticas da direita como uma mensagem cifrada e debochada, de cunho ideológico.

A crise não foi apenas um evento orgânico de rejeição do consumidor. Vieram na esteira danos reputacionais e econômicos, resultando em uma perda de valor de mercado da marca estimada entre R$ 152 milhões e R$ 200 milhões em um único pregão. Houve também a resposta da concorrência, o fenômeno da “arqueologia digital” com o resgate de campanhas antigas (como a do Romário em 2014) e as implicações de longo prazo para a neutralidade corporativa em um mercado hiperpolarizado.

O Cenário da Guerra Cultural Corporativa no Brasil

No finalzinho de 2025, o ambiente digital brasileiro consolidou-se como um campo de batalha onde o consumo deixou de ser uma atividade puramente econômica para se tornar um ato de alinhamento identitário. Marcas que historicamente operavam sob o manto da onipresença e neutralidade nacional — como a Havaianas, cujo slogan “Todo mundo usa” evocava uma universalidade democrática — encontram-se agora vulneráveis à fragmentação ideológica que divide o país.

Tabela de narrativas em conflito com reações e argumentos.

A controvérsia em análise não ocorre no vácuo. Ela é o reflexo de um ecossistema onde a hermenêutica da suspeita domina a interpretação de qualquer produto cultural. A escolha de Fernanda Torres, uma atriz consagrada e recentemente celebrada por seu papel no filme Ainda Estou Aqui (que revisita os horrores da ditadura militar), serviu como um catalisador semiótico. Para a agência de publicidade, Torres representava o prestígio internacional e a brasilidade sofisticada; para o espectro político da direita, ela era um símbolo da classe artística progressista, frequentemente em atrito com o Bolsonarismo.

Este relatório disseca como uma simples peça publicitária, destinada a motivar os brasileiros para o ano de 2026, acionou gatilhos profundos de partidarismo, transformando chinelos de borracha em munição política na plataforma X.

O Artefato Publicitário: Desconstrução da Campanha “Pé Direito”

Chinelos Havaianas pretos com logo branco e azul.

Para compreender a magnitude da reação, é imperativo realizar uma anatomia detalhada do material publicitário original. A peça não continha símbolos explícitos políticos explícitos, apesar de um possível uso da cor vermelha nas sandálias. A “ofensa” residia majoritariamente no campo da linguagem e da metáfora.

Análise do Roteiro e da Performance

O comercial estrutura-se em torno de uma quebra de expectativa. A narrativa visual coloca Fernanda Torres quebrando a quarta parede para falar diretamente com o consumidor.

A transcrição integral do video:

“Desculpa, mas eu não quero que você comece 2026 com o pé direito. Não, não é nada contra a sorte, mas vamos combinar: sorte não depende de você, depende… depende de sorte. O que eu desejo é que você comece o Ano Novo com os dois pés. Os dois pés na porta, os dois pés na estrada, os dois pés na jaca, os dois pés onde você quiser. Vai com tudo, de corpo e alma, da cabeça aos pés.” 1

A estrutura retórica utiliza a figura de linguagem da antítese. A atriz nega a superstição passiva (“pé direito”/sorte) para propor uma atitude ativa e de totalidade (“dois pés”/ação). A expressão “dois pés na porta” sugere vigor e entrada triunfal; “pé na jaca” sugere intensidade e celebração desmedida.

A Falha na Decodificação Semiótica

O erro de cálculo da campanha foi sociolinguístico. No Brasil pós-2018, as palavras “Direita” e “Esquerda” sofreram uma mutação semântica irreversível. Elas deixaram de ser coordenadas espaciais ou anatômicas para se tornarem os principais marcadores de identidade tribal.

Ao verbalizar a frase “não quero que você comece… com o pé direito”, a campanha inadvertidamente cruzou uma linha invisível.

Para um eleitorado sensibilizado por anos de retórica sobre “guerra cultural” e “comunismo”, a negação do “direito” não foi ouvida como uma recusa à superstição, mas como um ataque subliminar à ideologia conservadora (a Direita política). A presença de Torres, vista como uma antagonista política por este grupo, confirmou que a mensagem não era sobre sorte, mas sobre a eliminação simbólica da direita no ano eleitoral de 2026.

Cronologia do Backlash

Gráfico de pizza: boicote, defesa, neutro porcentagens

A crise não evoluiu gradualmente; ela explodiu. A plataforma X (antigo Twitter) serviu como o sistema nervoso central desta reação, permitindo que a indignação fosse coordenada, amplificada e transformada em ação de mercado (boicote) em menos de 24 horas. Abaixo, apresentamos a linha do tempo detalhada da crise, cobrindo os dias críticos de 21 a 23 de dezembro de 2025.

Linha do tempo de polêmica com Fernanda Torres.

Dia 1: A Ignição e o Enquadramento (Domingo, 21 de Dezembro de 2025)

O domingo marcou o lançamento da campanha e a imediata cooptação da narrativa por influenciadores digitais e políticos da oposição.

  • Manhã/Tarde: O Ruído Inicial. As primeiras reações surgiram de perfis de influenciadores de direita, que compartilharam o vídeo com legendas questionando a necessidade de “politizar o Natal”. A tese inicial era a de que a Havaianas estava promovendo “lacração”.

  • Noite: A Entrada da Elite Política. O ponto de inflexão ocorreu quando parlamentares com milhões de seguidores no X entraram no debate, validando a interpretação de que o comercial era um ataque político.

    • Nikolas Ferreira (PL-MG): O deputado, conhecido por sua habilidade em engajamento digital, tuitou: “Havaianas, nem todo mundo agora vai usar”, apropriando-se do clássico slogan da marca (“Todo mundo usa”) para sinalizar a exclusão do público conservador. 

    • Bia Kicis (PL-DF): A deputada ampliou o discurso ao explicitar a relação de rejeição mútua: “Se as Havaianas não nos querem, nós também não queremos as Havaianas”. Ela publicou um vídeo colocando um par de sandálias em uma sacola, simbolizando o descarte.

Dia 2: A Viralização do Boicote e o Pânico do Mercado (Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2025)

Na segunda-feira, a indignação digital transbordou para o mundo físico e para o mercado financeiro. O X amanheceu com a hashtag #BoicoteHavaianas entre os Trending Topics (assuntos mais comentados).

  • O Ritual de Descarte (Trash Can Challenge): Eduardo Bolsonaro (PL-SP), publicou um vídeo em que joga um par de Havaianas no lixo. Sua fala sintetizou a narrativa de perseguição: “Eles escolheram… uma pessoa de esquerda. Isso não foi por acaso. O pé direito e o esquerdo vão para o lixo”.

    • Análise do Impacto: Este vídeo criou um modelo de comportamento replicável. Centenas de usuários começaram a postar vídeos similares jogando seus chinelos no lixo. A visualidade do ato — desperdício de um bem material em nome de um princípio — sinaliza um alto grau de comprometimento ideológico, gerando um efeito cascata no algoritmo do X, que privilegia vídeos com alto engajamento.

  • A Lista de Alternativas “Permitidas”: O discurso no X rapidamente evoluiu da destruição para a substituição. Políticos como Rodrigo Valadares (PL-SE) começaram a listar marcas concorrentes que seriam “seguras” ideologicamente: Rider, Ipanema, Crocs e Cartago.

  • O Movimento de Luciano Hang: O empresário Luciano Hang, dono da rede Havan e ícone da direita, publicou uma foto usando sandálias Ipanema com a legenda: “Começando o ano com o pé direito. Nesse verão eu só vou usar Ipanema, e você?”

Dia 3: A Resposta da Esquerda e a Estabilização (Terça-feira, 23 de Dezembro de 2025)

No terceiro dia, a narrativa começou a se bifurcar. Enquanto a direita mantinha o boicote, a esquerda e o centro utilizavam o humor para deslegitimar o movimento.

  • O Meme da Tornozeleira: Em resposta aos vídeos de pessoas de direita descartando chinelos, usuários progressistas no X criaram uma contra-narrativa afirmando que calçado mais adequado não seria uma sandália, mas uma “tornozeleira eletrônica”. O termo “tornozeleira” associou-se à marca Havaianas nos trends, com montagens de IA mostrando chinelos com dispositivos de rastreamento.

  • Erika Hilton (PSOL-SP): A deputada amplificou o escárnio, tuitando que as sandálias “não servem direito nos cascos deles”, desumanizando os opositores e reforçando a polarização.

  • Tentativa de Pacificação Institucional: O Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tentou navegar entre os dois mundos. Em um evento público, declarou: “Aqui em São Paulo, a gente vai começar o ano novo com o pé direito”. A frase serviu como um “aceno de apito” (dog whistle) para a base conservadora, reafirmando o valor da expressão “pé direito” sem endossar explicitamente a destruição de produtos ou o ataque à empresa.

Gráfico de interesse crescente no final de semana.

O Impacto Financeiro na Alpargatas (ALPA4)

Chinelo Havaianas azul, gráfico caindo ao fundo.

A correlação entre a tempestade no X e a desvalorização das ações da Alpargatas na B3 (Bolsa de Valores do Brasil) foi direta e imediata, demonstrando a sensibilidade do mercado financeiro a riscos reputacionais derivados de guerras culturais.

Quantificação das Perdas

Na segunda-feira, 22 de dezembro, as ações da Alpargatas (ALPA4) operaram sob forte pressão vendedora. Os dados coletados indicam um movimento atípico, descolado do índice geral.

Tabela 1: Desempenho da Ação ALPA4 no Auge da Crise (22/12/2025)

Métrica Dados Análise Comparativa
Abertura ~R$ 11,89

Preço estável pré-crise (fechamento anterior) 16

Mínima Intradia Queda de até 3,41%

Momento de pânico coincidente com a viralização dos vídeos de boicote 12

Fechamento R$ 11,44 (-2,39%)

Recuperação parcial, mas ainda negativa 17

Perda de Valor de Mercado R$ 152 milhões – R$ 200 milhões

Estimativas variam conforme a metodologia de cálculo do valor total da firma 12

Índice Ibovespa Queda de 0,21%

O mercado geral caiu 10x menos que a empresa, isolando o fator crise 17

Interpretação dos Dados

A queda de quase 2,4% em um dia de estabilidade relativa do mercado sugere que os investidores precificaram um risco real de queda nas vendas para o primeiro trimestre de 2026. A comparação recorrente feita por analistas e pelo próprio Eduardo Bolsonaro foi com o caso da Bud Light nos EUA. Naquele episódio, um boicote conservador resultou em uma perda estrutural de participação de mercado que durou meses. O medo do investidor da ALPA4 era que a Havaianas sofresse um destino semelhante: deixar de ser a marca padrão (“default”) do brasileiro médio para se tornar uma “marca de esquerda”, alienando 50% do eleitorado.

Contudo, é crucial notar que a ação já vinha de uma volatilidade nos meses anteriores. A crise política agiu como um acelerador de tendências baixistas, mas a magnitude da perda (até R$ 200 milhões) em 24 horas atesta o poder destrutivo de uma campanha coordenada no X.

O Fenômeno Ipanema

Mulher comparando chinelos Ipanema e Havaianas

Enquanto a Havaianas permanecia em silêncio (uma estratégia de gestão de crise conhecida como “esperar a onda passar”), a sua principal concorrente, a marca Ipanema (do grupo Grendene), tornou-se a beneficiária acidental do caos.

Crescimento Métrico e Engajamento

Os dados de redes sociais mostram uma migração digital maciça.

  • Explosão de Seguidores: O perfil oficial da Ipanema nas redes sociais dobrou o número de seguidores em 24 horas. Esse crescimento não foi orgânico no sentido tradicional (atração por produto), mas político (adesão por contraposição).

  • O Paradoxo do Ganho Mútuo de Visibilidade: Curiosamente, a própria Havaianas também ganhou seguidores — cerca de 150.000 novos seguidores em 48 horas. Isso demonstra que a polarização gera visibilidade total. Enquanto a direita seguia a Ipanema para apoiar, a esquerda e os curiosos seguiam a Havaianas para defender ou acompanhar a polêmica (hate-following ou support-following).

Marketing de Oportunidade

A Ipanema adotou uma postura de “ambiguidade estratégica”. Sem emitir notas oficiais de apoio à direita (o que alienaria a esquerda), a marca permitiu que os influenciadores conservadores a adotassem. Relatos sugerem que a marca publicou mensagens irônicas ou “indiretas” sobre começar o ano bem, o que foi lido pelos usuários como um aceno.21 O slogan criado organicamente pelos usuários — “Vamos começar o ano com o pé direito e de Ipanema” — valeu milhões em publicidade espontânea.

Arqueologia Digital: A Hipocrisia e o Caso Romário (2014 vs. 2025)

Um dos aspectos mais fascinantes da dinâmica no X foi o uso de “arqueologia digital” para construir argumentos de defesa e ataque. Usuários resgataram uma campanha da Havaianas de 2014 para demonstrar a inconsistência do boicote atual.

O Precedente Romário

Em 2014, ano de Copa do Mundo no Brasil e reeleição de Dilma Rousseff, a Havaianas veiculou um comercial com o ex-jogador Romário.

  • A Cena: Romário aparece usando apenas a sandália do pé direito.

  • O Contexto: Ao ser questionado sobre o pé esquerdo, ele diz que despachou para a Argentina (para Maradona), pois o pé esquerdo dava azar.

  • O Slogan: “Havaianas: O pé direito é nosso”.

A Batalha de Narrativas Históricas

Este vídeo foi viralizado pela esquerda no X com o argumento: “Em 2014, a marca exaltou o pé direito e zombou do esquerdo, e ninguém da esquerda pediu boicote. Agora que a piada é inversa, a direita se ofende”.

  • Argumento da Inconsistência: O resgate do vídeo serviu para pintar a reação conservadora como “mimimi” (hipersensibilidade), argumentando que a marca sempre usou trocadilhos com pés e sorte, sem intenção partidária.

  • Argumento da Mudança de Contexto: Para a direita, o vídeo de 2014 prova que a marca “mudou de lado”. Se antes ela valorizava o “pé direito” (associado ao patriotismo e sorte), agora ela o rejeita, alinhando-se a uma agenda “globalista” e “anti-nacional” representada por Fernanda Torres.

A comparação ilumina como o Brasil mudou. Em 2014, “pé direito” era apenas uma superstição. Em 2025, é um shibboleth político. A mesma brincadeira, invertida, torna-se uma declaração de guerra.

A Mecânica do X (Twitter) como Fonte e Amplificador

A análise focada no X revela que a plataforma não foi apenas um espelho da realidade, mas o motor da crise. As características técnicas do X favoreceram a escalada do conflito.

Algoritmos de Indignação

O algoritmo do X prioriza conteúdo com alto engajamento emocional (raiva, deboche). Vídeos de pessoas jogando produtos no lixo geram retenção alta (o usuário assiste para ver o ato) e muitas respostas (tanto de apoio quanto de crítica). Isso criou um ciclo de retroalimentação positivo para a hashtag #BoicoteHavaianas.

A Câmara de Eco e o “Ratio”

Houve pouca interlocução real. Ocorreu o fenômeno de “bolhas paralelas”.

  • Bolha A (Direita): Compartilhava vídeos de descarte, listas de concorrentes e ataques a Fernanda Torres. Focava na “traição” da marca.

  • Bolha B (Esquerda): Compartilhava o vídeo de Romário, memes de tornozeleira eletrônica e zombava da “fragilidade” dos conservadores.

  • Interação: A interação entre as bolhas se dava quase exclusivamente através de Quote Tweets (Citar Tweet) para ridicularizar o oponente, o que o algoritmo interpreta como engajamento, ampliando ainda mais o alcance do conteúdo original.

A Morte da Neutralidade e o Risco Brasil 2026

O caso Havaianas/Fernanda Torres de dezembro de 2025 é um divisor de águas para o marketing no Brasil. Ele estabelece que, em um ambiente hiperpolarizado, a neutralidade é impossível. Qualquer símbolo, frase ou embaixador será submetido a um escrutínio ideológico implacável.

Principais Considerações:

  1. Vulnerabilidade Semântica: Marcas devem auditar suas campanhas não apenas para ofensas óbvias, mas para “gatilhos partidários”. Expressões idiomáticas comuns (“pé direito”, “verde e amarelo”, “vermelho”) foram capturadas pela política.

  2. O Custo do Posicionamento (Mesmo que Acidental): A Alpargatas perdeu cerca de R$ 200 milhões em valor de mercado em um dia por um trocadilho mal interpretado. Isso introduz um novo risco no valuation de empresas brasileiras: o “Risco de Guerra Cultural”.

  3. A Força da Mobilização Digital de Direita: O caso reafirma a capacidade da direita brasileira (liderada pelo clã Bolsonaro e influenciadores satélites) de pautar o debate público e infligir danos econômicos reais através da coordenação no X, algo que o marketing corporativo tradicional ainda tem dificuldade em combater.

  4. Resiliência vs. Fragilidade: Embora o impacto nas ações tenha sido severo, a história sugere que boicotes de bens de consumo de baixo custo (como chinelos) são difíceis de sustentar a longo prazo, ao contrário de produtos de consumo social (como cerveja em bares). O verdadeiro teste será o balanço do primeiro trimestre de 2026.

Em suma, a Havaianas tentou vender otimismo para 2026, mas acabou vendendo um espelho da fratura social do Brasil em 2025. Onde a marca viu “dois pés na porta”, o país viu dois lados em guerra, incapazes de caminhar juntos, nem mesmo com as mesmas sandálias.