Mãe!

Eu acabei de sair do cinema e vim correndo escrever esse texto, então me perdoe se ele soar como algo que não passou por um processo de análise e reflexão.

Ele não passou mesmo.

Mas eu não queria perder o impacto da obra. Meu coração ainda está batendo mais rápido e o estômago segue embrulhado, afinal de contas.

O novo longa de Aronofsky é tenso, difícil e indigesto. Daquele tipo de filme que tem gente saindo no meio da sessão, sabe? Ele vai despertar muita indignação e ira. Vai ter gente xingando a plenos pulmões.

Não tem problema. Você pode amar ou odiar (parece que é como a crítica e o público em geral têm se dividido), desde que você fale sobre ele.

mãe! É um filme que visa gerar debate, que questiona, que planta perguntas. Mais do que responder alguma coisa, acredito que seu intuito é fazer as pessoas refletirem sobre o significado das atrocidades que aparecem na tela.

Eu vou dividir a minha interpretação com você, mas apenas na segunda parte deste texto. Por enquanto vamos entender do que se trata essa história, sem dar spoilers:

A personagem principal é uma jovem mulher vivendo isolada com seu marido em uma bela casa em reforma. Essa mulher sem nome, apenas creditada como “mãe”, desempenha diversas tarefas domésticas e também trabalha incansavelmente nas obras da casa enquanto o marido, um poeta com bloqueio de escritor, tenta criar qualquer coisa que seja. Claro que ele não consegue. Bloqueio de escritor é uma merda.

O clima de tensão está presente desde os primeiros instantes, com a câmera de Aronofsky grudada na cara de Jennifer Lawerence e não saindo dali até o final, mas tudo piora quando outros personagens começam a aparecer, quebrando a rotina monótona do casal.

O primeiro desses personagens é o Homem, interpretado por Ed Harris. Ele logo se revela como um fã do trabalho do poeta, alegando que as palavras deste mudaram completamente sua vida.

Depois surgem a esposa do Homem (Michelle Pefeiffer), seus filhos, parentes e uma legião de gente, todas ligadas à adoração ao poeta e à sua obra.

O poeta aliás, parece ganhar novo ânimo e impulso criativo com o contato com os fãs e por isso permite que todos fiquem por perto, apesar do incômodo evidente de sua esposa. Temos momentos de afastamento e reaproximação do casal, até a revelação de que a protagonista está grávida, o que inspira ainda mais o poeta.

Aqui acontece a virada na história.

A segunda metade do filme embarca de vez no simbolismo e no exagero e é a que mais vai fazer parte do público torcer o nariz, embora seja extremamente chocante e poderosa. Infelizmente, é difícil falar dela sem estragar as surpresas, então, caso não queria saber de maiores detalhes sobre a trama, sugiro que largue o texto por aqui e vá conferir em primeira mão, ok?! Depois você pode voltar e nós seguimos no debate.

Apenas sugiro que você se informe um pouquinho sobre algumas histórias do velho e novo testamento. Ter conhecimento a respeito da mitologia judaico-cristã vai ajudar você a ter uma experiência mais completa ao assistir esse filme.

Porém, se você já assistiu a obra e quer mais é levar essa discussão adiante, então vem comigo.

 

E o Senhor disse: há muitos spoilers a partir desse ponto!

mãe! é uma metáfora.

Embora seja uma metáfora para o processo criativo dos artistas – que precisam de inspiração e sacrifício para entregar uma obra-prima a um público faminto – na minha opinião, seu paralelo mais poderoso está quando se alia essa metáfora com outra mais delicada: a religiosa. E, por isso, não estou certo de que o filme funcione plenamente se você não fizer o paralelo com diversos trechos do velho e do novo testamento.

Em alguns momentos a coisa parecerá maluca demais, pesada demais, para ter qualquer significado se você não tiver a bíblia como referencia.

Isso porque mãe! nada mais é do que uma reinterpretação (e crítica) desses textos sagrados e do impacto deles na sociedade.

O que temos aqui é o olhar de Aronofsky sobre a religião institucionalizada, mais especificamente sobre a religião judaico-cristã. Levando-se em conta que o diretor é um ateu que não tem medo de provocar e um cineastas que não faz concessões à audiência, já dá pra entender que tipo de filme temos em mãos, certo?

Tudo em mãe! tem uma conexão religiosa. Tudo possui uma carga simbólica. A começar pelos personagens,

O poeta, interpretado por Javier Bardem, é ninguém menos do que Deus. Um artista sem inspiração e distante que não consegue criar nada se não for adorado em retorno. Ao contrário do que poderia se esperar de um diretor ateu, Deus não é mostrado como um vilão clichê – e Bardem foi muito feliz em retratá-lo como alguém empático -, mas como um cara incapaz de enxergar as coisas por certos pontos de vista. Para ele, tudo o que importa é o seu impulso criativo. Ele apenas cria e dane-se o resto. Como ele mesmo diz, aqui e na bíblia, ele é o que é.

Os personagens interpretados por Ed Harris e Michelle Pfeiffer representam Adão e Eva. Repare como, em determinado momento do filme, eles fazem uma burrada apesar dos avisos que receberam e, como consequência, são expulsos do escritório do poeta… da mesma forma que Adão e Eva são expulsos do paraíso após comerem do fruto proibido (no momento da expulsão até os gestos de Bardem remetem a ilustrações clássicas de Deus banindo os infratores).

Essas versões modernas dos nossos ancestrais místicos também possuem filhos: Caim e Abel, e tal como no velho testamento, esses dois também sofrem um destino trágico.

Temos, pouco tempo depois, uma cena de confusão e bagunça na casa, envolvendo Adão, Eva e seus muitos parentes e amigos. O caos é tamanho que o encanamento de uma pia estoura, causando um verdadeiro dilúvio que, como consequência, afasta todos de lá.

Todos, menos o casal principal, que se reaproxima com a gravidez da personagem de Jennifer Lawrence. É onde saímos do velho testamento e entramos no novo.

Com a mulher grávida, o poeta produz uma nova obra. Uma obra arrebatadora que atrai uma nova leva de adoradores, em número muito maior do que antes. Embora cada um entenda a obra de um jeito diferente, todos dizem que parece que ela foi feita para eles.

Cada vez mais gente chegue. A casa é assolada e fica superpopulosa. A pobre mulher não quer aquela galera ali, ainda mais por estar quase na hora de dar à luz, mas seu marido não quer saber, ele está extasiado pela adoração do público. As pessoas amam sua criação. As pessoas o amam. Elas arrancam pedaços da casa apenas para terem algo dele. É o amor em seu último nível.

A editora do poeta aparece com uma nova edição da obra. Começa a violência.

Aqui Aronofsky nos mostra o absurdo das brigas religiosas, pautadas em interpretações diversas sobre um texto que muito provavelmente não passa de uma fábula. Pessoas se matam por causa de crendices. O ódio floresce.

Então a mulher precisa dar à luz.

Ela e o poeta se isolam para que a criança possa nascer. O bebê, uma clara representação de Cristo, vem ao mundo e recebe presentes. O poeta quer mostrar o filho aos seus adoradores, mas a mulher não permite. Ela zela pela criança enquanto é possível, mas ela precisa dormir…

Quando ela acorda, percebe que o marido entregou o bebê aos adoradores. Ela corre para resgatar o filho, mas é tarde demais: os adoradores despedaçam o bebê e o devoram. Consomem a carne e o sangue de Cristo.

A mulher se revolta. Ela ataca aqueles adoradores irracionais e selvagens, mas eles atacam de volta. É a Idade das Trevas.

Em uma cena chocante – talvez a mais forte do filme – os adoradores do poeta agridem a mulher sem nenhuma piedade. Eles a ofendem com os piores nomes, arrancam suas roupas e quebram seus dentes. É o domínio e subjugação da mulher por uma religião que enxergou o feminino como algo mau e demoníaco por muito tempo.

Mas o poeta intervém e a mulher sobrevive.

Machucada, sangrando, quebrada de todas as maneiras possíveis.

Não dá pra continuar assim. É necessário um apocalipse para acabar com tudo… e para recomeçar. Mas claro que o poeta não consegue criar porcaria nenhuma se não tiver alguém o adorando, alguém o amando. Então a mulher ainda tem um último papel a desempenhar. Mais um pouco de si a dar.

E desse jeito o filme acaba, com uma reviravolta perfeita para instigar discussões familiares nos almoços de domingo e para alimentar conversas de bar por muitas e muitas horas.

Tá Nano, entendi a alegoria de todos esses personagens aí, mas e a protagonista? Quem é a mãe do título?

Ela é Nossa Senhora, mas também o que Nossa Senhora representa arquetipicamente. Ela é a casa onde a história acontece. Ela é a Terra, Gaia, a natureza. Ela é a mãe que tenta manter tudo em ordem apesar da vaidade de um deus que cria sem se importar com as consequências, apesar de um povo que usa e destrói sem pensar no amanhã, apesar da ignorância de uma sociedade que deturpa e corrompe por achar que sua versão dos fatos é a única que vale.

No fim das contas, ela é quem dá a vida, mesmo que seja drenada ao longo do caminho.

Eu sei. Eu sei. É tudo muito louco. Como eu disse, você ama ou odeia. Acredito que, em meio a um povo extremamente sensível a questões religiosas como o brasileiro, é mais provável que o ódio fale mais alto. Mas será que isso não serve para validar ainda mais tudo que Aronofsky critica com a sua obra? É de se fazer pensar.

Fazer pensar.

Concordando ou discordando de seu ponto de vista, se o diretor conseguir isso, eu já considero o filme um sucesso.

Mas, claro… essa é apenas a minha interpretação dessa história polêmica e difícil. Que tal me falar um pouco da sua? ;)

91 comments
  1. Talvez os leitores precisem de uma interpretação cheia de negritos para poderem “pensar” a obra. Eu já acho que ela não passa de um filmeco pretensioso, esteticamente uma cópia de Lars von Trier.

  2. Cara eu interpretei primariamente como o “metáfora para o processo criativo dos artistas” e achei isso muito legal, mas vendo que todo mundo deixou isso de lado pra falar da parte religiosa que é completamente sem graça fiquei muito desapontado. A parte sobre criação artística é muito mais legal do que essa baboseira de Deus… Mas ninguém fala sobre isso, só explica a metáfora clara e sem graça da religião. :/

    1. Olha que interessante, Guilherme… pra mim, a metáfora para o processo criativo foi menos polêmica e até mais clara. Eu foquei na questão religiosa pois sou fascinado por esse assunto e acho a visão do Aronofsky sobre o tema muito interessante (como ele mostra desde Pi). Na verdade, é bacana perceber como as duas coisas (criação e religião) estão profundamente conectadas. Só discordo de você quanto à metáfora sobre religião ser sem graça. Sou agnóstico, mas mesmo assim acho toda a questão religiosa muito interessante e profunda. Embora eu tenha uma posição contrária a religiões institucionalizadas, não dá pra negar a importância delas na formação da nossa sociedade e na relação do homem com o mundo ao redor (tanto é que a maioria das pessoas que assistiram ao filme tem preferido debater sobre isso). Se não me engano, o Pablo Villaça fez uma análise mais voltada para a questão artística… acho que você vai gostar! Abraço!

    2. Nano Fregonese Entendo, eu não gostei muito disso, muitas obras já fazem esse tipo de referencia a religião, temos debate sobre religião o tempo todo toda hora. Agora vejo um filme legal, vou procurar algo sobre e… Mais debate chato sobre religião! De novo! Argh! Mas valeu pela dica, vou procurar a analise desse outro cara.

  3. Ao lado de Elle e Animais Noturnos (que são de 2016 mas só os vi em 2017), este foi um dos melhores filmes que assisti esse ano.

  4. Gostei do filme mas achei que ele se perde um pouco na subjetividade. É um grande filme, com direção incrível de câmera, belas atuações, ambientações e efeitos. Eu achei ele no entanto subjetivo, figurativo demais, o que me desconectou um pouco no terço final do filme, principalmente pq algumas questões que estavam sendo mostradas ali (diferença de idade do casal por exemplo) ficaram em segundo plano. Talvez seja essa a proposta mesmo. Ainda assim é intrigante e ousado e foi uma boa experiência de cinema.

    1. Luciana Rolim tava conversando com minha chefe hj desse filme que sai com uma cara de #wtf haha…mas lendo a critica e os comentários da galera faz mais sentido agora mas mesmo assim é loucura

  5. Vi o filme e acho que o Aronofsky tem uma visão muito peculiar do que é Deus. Mas preciso assistir novamente, pois é um filme cheio de simbolismos e não é o tipico filme que tem que mastigar para entender melhor.

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