O cenário político dos EUA do começo dos anos 2000 é lembrado por vários acontecimentos marcantes: desde as denúncias de fraude nas urnas no estado da Flórida nas eleições presidenciais do país, passando pela ‘Guerra ao Terror’ decorrente dos atentados do 11 de Setembro e a invasão ao Iraque em 2003 (sob o falso pretexto de que Saddam Hussein produziria armas de destruição em massa), até a crise financeira de 2008 incitada pelo mercado imobiliário nacional.
Esse contexto é terreno fértil para que Adam McKay possa traçar um longa que tem como personagem principal o vice-presidente dos Estados Unidos da época, Dick Cheney. Vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado pelo igualmente crítico e ácido The Big Short (A Grande Aposta) de 2016, McKay parece expandir a voracidade de seus diálogos e explorar artifícios da câmera ainda mais experimentais em Vice.
Com experiência em diversos filmes do gênero de comédia como O Âncora, Quase Irmãos e Ricky Bobby – A Toda Velocidade, além de programas de TV como Saturday Night Live, seu novo longa mais se assemelha a obra cinematográfica que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar, mantendo um tom caricato, porém envolvente. Nele, o diretor faz diversos paralelos e analogias por meio de fatos cotidianos do dia a dia do cidadão comum e os contextualiza com a política do país, utilizando de recursos objetivos ao criar situações que despertam desde o constrangimento à cólera, da aversão à consternação.
A atuação de Christian Bale como Dick Cheney dá um show à parte: vencedor de alguns prêmios na atual temporada por sua atuação (como Melhor ator pelo Globo de Ouro e Critics’ Choice Award), a indicação ao Oscar de Melhor Ator pelo filme é mais do que merecida, e aparenta ser uma das mais certeiras em sua carreira. Seu primeiro e único prêmio da academia foi conquistado em 2011, como melhor ator coadjuvante pelo filme The Fighter (O Vencedor). Entretanto, tudo indica que isso irá mudar com essa possível conquista inédita em 2019.
Como já havia feito antes na produção American Hustle (Trapaça), o ator engordou mais de 18kg e malhou seu pescoço de modo a torná-lo mais grosso para que sua forma física ficasse o mais semelhante possível à de Dick Cheney.
Aqui, ele interpreta a ascensão de um político desde sua época como um indivíduo comum e sem objetivos concretos na vida (algo que muda graças às duras investidas de sua esposa Lynne Cheney, interpretada por Amy Adams) até um jovem aprendiz do sistema político estadunidense, quando passa a trabalhar como assessor direto de Donald Rumsfield, interpretado por Steve Carell, em Washington. Lá, Dick passa a dar seus primeiros passos visando aprender os traquejos necessários para ascender na esfera pública.
Bale consegue atingir uma marca notável ao despertar o sentimento de ódio do seu espectador pelo personagem que interpreta, apesar de ter dado vida a diversos papeis famosos (como Batman, da trilogia de Nolan) e ter certa alcunha de queridinho do público, cumpre seu papel em um tom extremamente crível e envolvente.
A teoria do executivo unitário
Em um determinado ponto do filme, Cheney se reúne com Dick Antonin Scalia, um jovem advogado que atua no Departamento de Justiça (e que posteriormente viria a se tornar membro do Supremo Tribunal dos EUA) que apresenta, de modo didático ao espectador, a teoria do executivo unitário. Essa interpretação feita com base no segundo artigo da constituição estadunidense consiste basicamente na interpretação (advinda do direito constitucional americano) de que todo o poder executivo do país pode ser assumido pelo presidente de modo absoluto. Essa teoria é seguida por Cheney, a fim de contornar opositores políticos e controlar a curva das principais decisões relacionadas aos EUA. Aqui está a busca pelo poder em sua forma mais pura, mais integral e também perversa. A consistência de um comando unificado, descartando diferentes vieses advindos de outros representantes públicos. Trata-se da busca genuína pelo poder para somente possuí-lo: o sentimento de conquista e de plena capacidade. Durante toda essa trajetória, um narrador extremamente inusitado nos conta as passagens do personagem de uma perspectiva, digamos, única.
O filme aborda diversos pontos com franqueza, mostrando que o próprio material usado na pesquisa para desenvolvimento de seu roteiro muitas vezes está incompleto (muitos e-mails da administração Bush foram ‘perdidos’ após seu mandato), trazendo esse aspecto na narrativa de forma condensada com o enredo do filme. Nele também imperam a ganância pela necessidade de demonstração de poder em si, independente das consequências. Diversas metáforas com o aspecto selvagem do reino animal também são exibidas, exaltando o lado obscuro que a busca pelo poder atinge, passando desde a perda de vidas humanas até o impacto que membros da própria família do político sofrem com algumas de suas decisões.
A beira do abismo
Exaltando a falta de credo por uma estabilização política legítima ou por um ideal mais genuíno, Vice mostra que o que importa é manter-se no poder de modo implacável, sem necessariamente ter uma ideologia por trás dos esforços empregados para tal. Essa visão em tom niilista do roteiro, de que os representantes públicos não buscam nenhum benefício final que não seja o próprio, questiona, em tom acusador, a existência da plataforma política atual sem fazer distinção de posições (candidatos de ambos os partidos aparecem em momentos oportunos do longa). Vai ainda além ao exibir uma total falta de credo de que essa situação um dia vá melhorar de alguma forma, trazendo à tona um tom tragicômico em diversos trechos, como se não importassem as ações a serem tomadas tanto pelos personagens do longa quanto pelos espectadores. O status quo não será alterado, então resta satirizar e ressaltar os esquemas de corrupção pelo poder em si.
Em seus minutos finais, o longa traz ainda reflexões atualizadas (quebrando a 4ª parede) sobre a atual administração do governo Trump e a falta de atuação política de grande parte da população de seu país. É basicamente uma caricatura de perfis tipicamente americanos, mostrando como eles se relacionam entre si e o quão prejudicial essa relação pode vir a ser, sem escolher lados de modo nítido.
Analogias certeiras e pragmáticas: esse é somente um dos diversos recursos empregados durante o longa que mostram a falta de fé no sistema político estadunidense. Seja por seus diálogos, pelo modo como o narrador explica passagens mais complexas de modo trivial, o modo como a câmera se comporta em meio a momentos chave ou as indagações feitas em diversos momentos, Vice mostra o lado obscuro da trivialidade com que nós, espectadores, tratamos de política na maior parte do tempo.