Se olharmos em retrospecto, um dos filmes mais falados na última temporada foi Roma, do diretor mexicano Alfonso Cuarón com produção da Netflix. Liderando as indicações ao Oscar 2019 (10 ao todo, ao lado de A Favorita), o longa possui diversos aspectos interessantes e curiosidades para quem observá-lo mais atentamente. Com a premiação do Oscar marcada para amanhã (24) às 22h, Roma já conquistou diversos prêmios até aqui (como Melhor Filme no Golden Lion do festival de Veneza, BAFTA e Critc’s Choice Award, Melhor Filme de Língua Estrangeira pelo Globo de Ouro e BAFTA além de Melhor Diretor também pelo Globo de Ouro e BAFTA). Na cerimônia do Oscar, o diretor já levou o prêmio de Melhor Diretor pelo filme Gravidade (2014), seguido por Alejandro Iñárritu (2015 e 2016) respectivamente por Birdman e O Regresso, e de Guillermo Del Toro (2018) por A Forma da Água. “Los três amigos”, como são popularmente conhecidos pelo público, fazem história no cinema mexicano pelas conquistas frequentes da categoria.
O enredo
Roma é chamado por alguns críticos de obra-prima de Cuarón ou até de um novo clássico na história do cinema moderno, não por acaso.
O longa conta a história de Cleo, (interpretada por Yalitza Aparício, que vive seu primeiro papel como atriz) empregada doméstica que vive na Cidade do México na década de 70 e presta serviços a uma família branca de classe média que vive no bairro de Colonia Roma (razão do nome do filme). A mãe na família em questão, Sofia (interpretada por Marina de Tavira, que concorre ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante) passa por problemas conjugais com seu marido, Antonio (Fernando Grediaga). O desenrolar da trama mostra o aprofundamento da relação de Cleo e Sofia, que se aproximam devido a mudanças repentinas que a vida trouxe de forma inusitada.
Retratando com maestria essa delicada relação da família com Cleo, a narrativa do filme nos faz observar a visão de seus diferentes personagens frente a acontecimentos sociais extremamente relevantes pelo qual o México passava, como o massacre de Corpus Christi ou “Halconazo”, que ocorreu em 10 de junho de 1971 (desastre que teve como início um protesto estudantil pela libertação de alguns presos políticos que terminou como um massacre de 120 mortos pelo grupo paramilitar “Los Halcones”, financiado pelo governo e treinado pela CIA).
Outra característica marcante do longa são os enfoques dados a cenas que aparentemente parecem ser banais como uma caneca quebrada ao chão, um avião desaparecendo no horizonte, um carro com dificuldades para ser estacionado em uma pequena vaga, o alongamento físico de Cleo com sua irmã. Todas cenas que parecem comuns em alguns momentos, mas trazem à tona uma variedade de signos relacionados com diversas passagens do filme.
Este é, inclusive, uma das características mais incríveis de Roma. A facilidade em retratar acontecimentos cotidianos com uma naturalidade e fluidez extremamente orgânicas. Em muitos momentos parece que o cinegrafista foi colocado em algum ponto e passou a filmar a trivialidade das ruas, das pessoas que passavam pelas calçadas, ou das crianças brincando. Tudo acontece de modo espontâneo, genuíno.
Filmado em preto e branco, a captação de imagens do filme dá um show à parte: em um formato contínuo de filmagem, o diretor parece querer mostrar a trajetória de alguns personagens pela câmera. Existem takes da Cleo, por exemplo, que são feitos de forma circular enquanto ela faz tarefas domésticas na casa em que é empregada. Essa forma regular parece até mostrar o dia a dia cíclico da personagem, com ela recolhendo roupas, cuidando das crianças e lavando louça, dia após dia.
Além de atuar como diretor, Cuarón também foi escritor, produtor e cuidou da fotografia do filme, que teve seu enredo baseado em algumas de suas memórias de infância. Durante a conquista de duas premiações pelo sindicato de diretores dos Estados Unidos, o diretor exaltou sua babá, que inspirou a personagem Cleo: “Obrigado a Libo, minha mãe e meu país, o verdadeiro arquiteto de Roma”. Libo, ou Liboria Rodríguez, também possui origem indígena e começou a trabalhar com a família de Cuarón quando o diretor tinha apenas 9 meses de vida, e sua trajetória foi parcialmente adaptada a fim de servir como base para o enredo do filme.
Abordando diversos tópicos e passando por diversas rotas, o diretor consegue montar uma trama firme e organizada. Ele traz à tona questões comuns em uma narrativa complexa e, ao fazer isso, percorre por diversas caminhos que levam a um só desfecho, a vida comum, marcada por adversidades e relações sociais herméticas.
Ainda sobre o processo criativo do longa, recentemente a Netflix soltou um pequeno teaser a respeito de algumas inspirações para sua produção, conforme abaixo:
Polêmicas
Em meio a uma produção que destaca tantas questões sociais, o filme ainda foi cercado por acontecimentos que infelizmente não são apenas ficção. O ator mexicano Jorge Antonio Guerrero, que interpreta Fermin, o par romântico de Cleo no filme, teve visto negado para participar da cerimônia do Oscar em três tentativas anteriores. Somente dia 13 de fevereiro o ator obteve a liberação e poderá participar do evento. Em seu Instagram, ele agradeceu o apoio da Netflix, o consulado mexicano de Los Angeles e seus agentes pelo aval concedido.
Outra questão envolve a atriz principal do longa (que concorre ao Oscar nessa categoria), Yalitza Aparicio. Duramente criticada pelos atores, atrizes e diretores mexicanos e outros membros da indústria cinematográfica do país por sua falta de experiência como atriz e por sua origem indígena.
Um grupo de atores chegou até a tentar evitar que Yalitza fosse escolhida como melhor atriz no prêmio Ariel pela Academia Mexicana de Artes e Ciências (o mais prestigiado do país). A tentativa de boicote a nomeação da atriz foi divulgada via Twitter por Rossana Barro, coordenadora do Festival Internacional de Cinema Morelia.
Outro ator envolvido na repercussão foi Sergio Goyri, que teve um vídeo vazado onde reclama que tenham “nomeado uma índia” ao Oscar. Recentemente, Sergio divulgou um vídeo em seu Instagram desculpando-se pelas alegações.
Esse contexto tem grandes relações com a obra de Cuarón, tornando-a ainda mais necessária e atual para os dias de hoje. Ao destacar uma personagem que muitas vezes é colocada como pertencente a um 2º escalão da sociedade, o filme levanta importantes debates da relação entre empregador e empregado, que se mantém atuais desde a década de 70, conforme destacado pelo longa.
Cheio de elementos semióticos, Roma chega como favorito em diversas categorias do Oscar pelo peso de seu enredo que retrata o comum de um ponto de vista real, trazendo referências que vão ser discutidas muito após seu lançamento.
Minha aposta de melhor Filme com certeza! Roma foi um deleite aos olhos!!