O filme Nós do diretor estadunidense Jordan Peele já alcançou uma marca impressionante em seu final de semana de estreia: tornou-se o filme de terror com maior arrecadação nesse período nos EUA com U$ 70 milhões, desbancado o longa Um lugar silencioso, que possuía o recorde anterior.
Nós ganhou notoriedade por conta do último trabalho nos cinemas do diretor, Corra!, que lhe rendeu o Oscar de Melhor roteiro original (tornando-o o primeiro diretor negro a conquistar a premiação), além de indicações a Melhor filme, Melhor diretor e Melhor Ator para Daniel Kaluuya. Dando uma visão própria ao gênero de terror com a produção e abordando questões raciais enquanto sobrepõe um tom mais humorístico em alguns momentos dramáticos, o próximo trabalho do diretor era muito aguardado pelo grande público, o que foi confirmado com a quebra de recorde na bilheteria.
Tom do filme
Apesar do sucesso de bilheteria e crítica de Corra!, Jordan Peele recebeu algumas duras avaliações por conta das passagens de comédia que o filme possui. Independentemente disso, Nós se profunda no estilo do diretor ainda mais: não são poucas as cenas humorísticas contidas no longa, que são muito bem subvertidas quando a narrativa muda sem aviso para um tom gore, mais pesado e sanguinolento. Esse artifício em exibir essa dualidade de estilos faz com que o filme soe original, diferenciando-o de outras produções de terror. Visando ressaltar inclusive que Nós pertence ao gênero, o diretor publicou em seu Twitter uma alegação clara e direta, expressando a ideia de que um filme disruptivo pode combinar dois estilos de narrativa sem ser descaracterizado.
Crítica com Spoilers
O filme traz a história de uma típica família de classe média estadunidense composta pela mãe Adelaide (Lupita Nyong’o), o pai Gabe (Winston Duke) e seus filhos Zora (Shahadi Wright) e Jason (Evan Alex) durante uma viagem a casa de veraneio da família. Em um determinado momento, eles acabam visitando uma praia próxima ao local onde a personagem de Lupita já esteve no passado quando criança, mas que não voltará a visitar desde então devido a um trauma sofrido na época. Apesar de um plot twist um tanto quanto óbvio sugerido já nas primeiras imagens do longa, ele desenvolve algumas analogias extremamente interessantes por meio de seus personagens, objetos utilizados, músicas exibidas e alguns outros elementos.
Um indício claro está em seu título original: Us não significa somente ‘nós’, mas também é a abreviação de United States, já exibindo a existência de uma crítica social clara a ser explorada. Nós trata da segregação entre uma classe marginal de pessoas e outra mais central: a diferença entre grupos de indivíduos e a relação ambígua que possuem entre si. Passagens do filme como o momento em que a cópia de Gabe, o pai da família, pega os óculos do personagem (uma vez que o mesmo também apresentava dificuldades para enxergar) enfatizam essa vontade dos excluídos em tomar o protagonismo para si.
Essa visão também é reforçada com a tentativa por parte das ‘cópias’ de replicar a ação beneficente da década de 80 “Hands Across America”, com os clones dando as mãos e cruzando o país ao final do filme, mostrando uma divisão de forma clara e concreta. Outra passagem que elabora isso é a aparição em alguns momentos do trecho da bíblia Jeremias 11:11, que diz “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. Contextualizando ao filme: se existem um ‘eles’, então claramente existe um ‘nós’. E se as pessoas do mundo real estão de alguma forma ignorando a tanto tempo as cópias do mundo invertido que não conseguem ouvi-las? Quando essas cópias tentaram chegar ao poder e conquistarem espaço, será que darão o benefício da palavra as pessoas do mundo real?
Outro significado a ser interpretado são os coelhos. Basicamente, eles servem de alimento para as cópias, mas por que a escolha desse animal em específico? Talvez o diretor queira um animal que represente uma cobaia, que é exaustivamente usado em experiências cientificas e, portanto, considerado de uma classe inferior.
O figurino também chama a atenção: segundo o próprio Jordan Peele, a ideia do figurino é criar um visual icônico, trazendo diversas interpretações para alguns elementos. Dentre eles, a tesoura é o mais chamativo: por que não uma faca ou outro objeto para a realização da intimidação? Uma das explicações possíveis é por que a tesoura é composta por duas partes iguais juntas, que funcionam em sincronia (quando uma ponta da tesoura se abre, a outra faz o mesmo movimento, porém contrário).
Além da questão da exclusão de uma parcelada da sociedade, as cópias também podem ser interpretadas de outra forma: quais tipos de pessoas nós possuímos dentro de nós mesmos, e o que aconteceria de elas assumissem o controle? Alguns posters do filme também podem indicar essa visão do diretor de que o mundo real na verdade não passa de uma mera máscara, e o mundo invertido é a o que possuímos invariavelmente em nosso interior.
Declaração polêmica
Durante uma sessão de perguntas e respostas no evento do Upright Citizens Brigade Theatre (que aconteceu no último dia 27/03), em Nova York, o diretor Jordan Peele analisou o mercado cinematográfico atual e a promissora perspectiva de mudança na questão de representatividade.
Uma declaração do diretor que chamou atenção foi: “Não consigo me ver escalando um cara branco para o papel principal em nenhum dos meus filmes. Não é que eu não goste de caras brancos, eu só sinto que já vi esse filme antes”. Isso pode ser interpretado como a falta de espaço de pessoas negras na indústria cinematográfica (que levou a movimentos recentes como o de Boicote ao Oscar, por exemplo).
Nós é um filme com uma temática diferente de Corra!, porém com um tom e narrativa próprias mais exploradas no decorrer do longa. Com uma grande quantidade de signos a serem interpretados, a produção é um prato cheio para quem busca entender referências do diretor e traçar diversos paralelos. As ótimas interpretações (com destaque para a vencedora do Oscar Lupita Nyong’o) são um dos pontos fortes do filme, e ajudam a desenvolver uma ambientação típica da classe média estadunidense. Resta aguardar os próximos trabalhas de Jordan como diretor e quais outras questões serão aprofundadas em suas novas produções.