Quando você envelhecer, com aquele cinza ao redor e com um bocado de de sono, sobre o que vai falar? Seus netos? Os aromas e gostos distantes da sua própria infância? Seu primeiro amor? Ou naquela época em que você entrou na Umberto’s Clam House e atirou no Crazy Joe, você não o acertou direito, então ele sai correndo dali, mais com tropeços, e você segue o cara e acaba com ele na calçada, sabe, pop-pop, fechar o negócio? E no fim, pensar: “Saudados dos bons tempos”.
O triste destino de Joe é um dos muitos eventos lembrados por Frank Sheeran (Robert De Niro), em “The Irishman“, enquanto ele se senta em uma casa de repouso e evoca lembranças de “acontecimentos tristes” do passado.
Martin Scorsese, diretor do filme, retorna ao solo rico que ele cultivou e semeou antes, em “Mean Streets” (1973), “Goodfellas” (1990), “Casino” (1995), “The Departed” (2006) e o episódio de abertura de “Boardwalk Empire“, em 2010. O novo filme é adaptado por Steven Zaillian a partir de um livro de Charles Brandt, parcialmente baseado em conversas com o verdadeiro Frank Sheeran, que morreu em 2003, intitulado “I Heard You Paint Houses”. Vemos a frase na tela, em letras maiúsculas. Acredito que seja o que falamos a um assassino quando fizermos perguntas educadas sobre sua disponibilidade – uma dica útil, embora não se você estiver realmente preocupado em redecorar sua casa.
A história é contada em flashbacks, em momentos por voz-off ou para a câmera, com Frank olhando diretamente – e de certo modo desconcertante – para nós, como se estivesse sendo entrevistado para um documentário. Para lá e para cá, deslizamos ao longo das décadas, pavimentando a história da ascensão, o declínio e a queda de Frank. Nós o vemos como um rapaz jovem e saudável, entregador de carne e, tão logo em seguida, como o ‘fixer‘ para os Bufalinos, que não são, como o nome sugere, os monarcas reinantes do comércio de mussarela, mas um notável clã criminoso na Filadélfia. Frank, acusado de roubo, é defendido por Bill Bufalino (Ray Romano) e faz amizade com o primo de Bill Russell (Joe Pesci), que se torna uma amizade de alma gêmea por toda a vida. Frank logo evolui de fixer para ‘cuidar dos problemas de modo definitivo‘, do modo Scorsese, como sempre, trocando a grandeza pelos detalhes menores – uma arma entregue em um saco de papel marrom, sem mais barulho do que um sanduíche.
Cena. Frank é apresentado a Jimmy Hoffa (Al Pacino), cujo comando dos Teamsters (Eu não tiro da mente “team-hamsters”. Desculpe.) é absoluto e que precisa de um guarda-costas. Aqui, é instrutivo comparar o Hoffa de Pacino com o de Jack Nicholson, no subestimado “Hoffa” (1992). Pacino é mais magro e mais alto, com um olhar cauteloso e com ar assombrado; Nicholson é mais um bulldog – quadrangular, desperdiçando menos palavras.
Muito do “The Irishman“, em seus estágios posteriores, é consumido pela “nuvem Hoffalogical” – talvez demais, com um empurrãozinho de ajuda de especulação. Hoffa desapareceu em 30 de julho de 1975 e não deixou vestígios; Desde então, rumores surgiram e o filme, endossando as alegações de Brandt, em seu livro, identifica Frank como o assassino de Hoffa. Quer você compre ou não a tese, tão calma e sem remorsos é a clareza com que Scorsese registra os eventos daquele dia que de alguma forma você cede a eles – não como uma fuga de fantasia, mas como a reconstrução de uma verdade estabelecida. Esse é o método do filme: paciente, composto e calmo, a ponto de parecer um froideur. O filme dura pouco mais de três horas, e mantém um ritmo sombrio, como um enlutado em um cortejo fúnebre. Sempre que um carro da cidade – o transporte preferido dos bandidos – passa diante da câmera, parece um carro funerário esperando.
Quanto a Frank, quando não está empunhando uma arma, ele gosta de ficar à margem, mantendo seu conselho. É uma alegria ver De Niro mais atento, depois de muitos filmes que diluíram sua força de concentração. O filme faz um esforço descarado para explicar a estranheza da mudança étnica do ator para o personagem – que envolve o modo da fala, até as cores dos olhos, fazendo Russell perguntar a Frank: “Como um irlandês como você fala italiano?”. Ao que Frank responde que, nas forças armadas, ele lutou pela Itália, pegando um pouco do jargão pelo caminho. Neste momento você pensa um simples “ok”.
Esta não é a primeira ocasião em que De Niro se afastou de sua identidade cultural para um longo e cronologicamente complexo movimento de gângsteres. Em “Once Upon a Time in America“, de Sergio Leone (1984), ele era Noodles, que liderou uma gangue de amigos judeus através de uma vida inteira de tentativas falhas de sucesso no crime e contravenções. Mas, ao contrário de Leone, Scorsese coloca “The Irishman” em horizontes mais amplos em mente.
“Você gostaria de fazer parte dessa história?”, Pergunta Hoffa a Frank, como se soubesse que todos estão em um filme, e há um toque de Zelig no talento peculiar de Frank por estar por perto sempre que uma crise vai surgir. Ele dirige um caminhão cheio de armas para os homens que estão indo para a Bay of Pigs, e seu contato na entrega, em Jacksonville, é “um cara com orelhas grandes, chamado Hunt” – E. Howard Hunt, que Frank mais tarde reconhece na TV, durante a crise política dos Estados Unidos em Watergate. Então, nós temos os Kennedys.
O filme encoraja pensamentos sombrios sobre o crime organizado e suas ligações ao homicídio político, e Frank está presente quando Hoffa ordena que o Stars and Stripes (o apelido da bandeira estadunidense), a meio mastro após a morte de John F. Kennedy, retorne ao topo do mastro no telhado da sede dos Teamsters.
Após assistir, prepare-se para a necessidade de consumir o filme e ainda continuar pensando em cada passo da história, adicionando seu próprio pós-roteiro, recriando e expandindo o mundo. Especialmente deste que já nasce um filme que quer ser icônico.
O filme deve ganhar algumas salas de cinemas no Brasil em Novembro, sem datas ou quais cinemas e com estreia na Netflix para todos os assinantes no dia 27 de Novembro.