Eu queria poder escrever uma história que fosse diferente do que qualquer outra pessoa pudesse escrever, um relato inédito. Muitos estão em casa, mas cada um pode dar uma visão própria do que isso significa, e visões diferentes, não me canso de dizer, é meu alimento preferido. Existe uma agonia naquilo que nos limita, e se for fisicamente, eu me coço inteira só de imaginar. Mas não ser capaz de expressar algo talvez me agonie mais do que não poder sair de casa. Ninguém entra, ninguém sai: vamos ter que dar um jeito de sossegar as bundas — acho que essa seria a manchete que eu escreveria se fosse jornalista, e muito provavelmente é por isso que eu não sou.
Essa suspensão de tudo o que diariamente é imposto como obrigatório é definitivamente esquisita. A terra deveria ter parado de girar, não? Ou mudado a rotação pro outro lado, dado três repiques de soluço, eu não sei, alguma coisa deveria ter acontecido fisicamente com o planeta para dar vazão ao absurdo. Eu estou surpresa que exista algo mais urgente que a roda da economia girando. Acho que eu sabia disso quando era criança, mas devo ter esquecido. O que a Terra não somatizou sobrou pra nós e todo dia eu acordo com a certeza de que minha garganta está estranha (não que ela fosse muito normal antes).
Conversava com um amigo arquiteto sobre a utilização do termo autoportante para pessoas, para designar a responsabilidade que cada um tem sobre si. Dizíamos: seja autoportante! Numa forma de dizer: não crie deliberadamente problemas para si que precisarão ser resolvidos por outras pessoas que não você. Em outras palavras: sustente seus B.O’s, meu camarada. O contexto eu não menciono pra não precisar entrar para o programa de proteção a testemunhas, afinal, nada mais deselegante do que se tornar a fofoqueira da quarentena. Mas fiquei pensando na questão humana autoportante e como ela apesar de individual por definição pode transitar entre o indivíduo e a coletividade com passos larguíssimos.
Cuide-se, sim você, cuide-se, ajeita essa postura primeiro que eu sei que está torta, e sempre que possível lave as mãos — seria a minha manchete do dia 2 de quarentena. Parece tão direto quanto aquela imagem do Tio Sam apontando um dedão na sua cara, ei você, é você — ao que enquanto lê você olha para os lados para saber se é com você mesmo — É com você: cuide-se. Veio à memória o tempo da faculdade, quando se um trabalho fosse individual eu carregava os prazos até o limite da sanidade universitária, uma clara demonstração de irresponsabilidade para comigo. Mas se o trabalho fosse em grupo, a coisa mudava de figura, eu não pisava um centímetro fora da linha. Minha responsabilidade com os outros sempre foi maior que a minha responsabilidade comigo mesma. Se Freud explica, me conta que eu quero saber, estou com tempo para isso.
Alguém — e para efeitos de esclarecimentos quarentênicos, toda vez que eu disser “alguém” quer dizer que eu não lembro quem, mas provavelmente tirei de um livro, ou um filme, ou um vídeo do youtube, ou um artigo, ou uma série, ou uma entrevista e talvez em última instância do globo repórter — Alguém mencionou que muito se fala em autoconhecimento, porém, para ele, de nada vale se conhecer a fundo, caso você não esteja inserido em um contexto social. A crítica era para a utilização de retiros como forma de autoconhecimento profundo que, segundo alguém, estes serviriam apenas para acalmar os pensamentos, dar base para construção de planos, dar sossego para cérebro que posteriormente poderia trabalhar melhor. Mas a pessoa que você realmente é, essa pessoa é aquela que existe (e resiste) dentro da sociedade e não apartado dela. Essa ideia me parece irmã daquela que diz que só nos conhecemos verdadeiramente no caos, e prima um pouco distante daquela que diz que só conhecemos os amigos de verdade em tempos de dificuldade. O caos é essa constante esbarração nos universos dos outros e os amigos representam o abstrato que é se importar (ou não) com a sensação de bem estar para além dos limites do seu próprio corpo. Isso tudo junto me lembrou da animação que vi em um artigo de várias esferas se chocando aleatoriamente para mostrar o processo de contaminação em uma epidemia. Por hora eu encerro com próprio artigo para fins informativos, mas também e principalmente porque vai ser necessário mais de um texto para atravessar a quarentena.