Três clássicos do cinema para ver o quanto antes

A arte do engano: “Profissão: Repórter”, “Noite de Estreia” e “Persona” são filmes para serem vistos mais de uma vez.
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? Profissão: Repórter (1975)

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Pouco antes do desfecho de “Profissão: Repórter” (1975), filme de Michelangelo Antonioni, David (Jack Nicholson) conta sobre um homem cego desde o nascimento, que voltou a ver após 40 anos. No primeiro momento, conta David, ele estava muito feliz, encantado com a riqueza das cores e formas. Mas, depois se matou por não suportar ver a sujeira do mundo.

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O trecho antecede uma das cenas mais bonitas do cinema, o famoso plano-sequência de sete minutos, filmado sob o ponto de vista de uma janela.

David é um repórter desiludido que toma o lugar de um contrabandista de armas, quando este morre enfartado no mesmo hotel onde ele se hospedara.

A busca por uma identidade nova, que fuja da obrigação factual, tão cara a um repórter, e a angústia de jamais ver o mundo com a inocência de um ex-cego, acompanham David em um road-movie magnífico, emblemático e doloroso. O título original, “The Passenger”, dimensiona melhor a viagem interior de David enquanto ele descobre paisagens e geografias lindas em Barcelona.

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A magnética e genial atriz, Gena Rowlands

? Noite de Estreia (1977)

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Em “Noite de Estreia” (1977), o diretor John Cassavetes compõe a rotina de uma atriz diante de um papel que ela não quer interpretar: o de uma mulher que envelhece. Na superfície, esse desafio se intercala com a dor humana – a matéria prima essencial dos filmes dele – com a surpresa diária que é viver; os gestos afetuosos e terríveis vindos da mesma pessoa, e a capacidade criativa de inventar sentimentos e sensações.

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Gena Rowlands emprestava seu corpo e voz para que o diretor se conectasse com o público. Nesse filme, nunca sabemos qual é o limite entre Myrtie Gordon – a atriz – a personagem na peça que ela atua, e até mesmo na relação entre Gena e John Cassavetes, casados por mais de 40 anos. É como se obra e criação coabitassem no mesmo espaço, dividindo memórias ficcionais com tempos e experiências reais.

Em uma das cenas mais poderosas do filme, Myrtie quebra a quarta parede do palco, e revela o seu amor misterioso pelo colega de cena, Maurice (interpretado por Cassavetes).

? Persona

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A premissa de “Noite de Estreia” tem uma parcela de “Persona”, filme do sueco Ingmar Bergman. Feito quase 12 anos antes, a história também fala de uma atriz em crise, chamada Elisabeth Vogler, que fica muda após uma sessão de Electra, a peça que protagoniza. Como tratamento, ela vai para um casa distante da cidade aos cuidados de Alma, a enfermeira.

Alma e Elisabeth se misturam. Podem ser uma só pessoa ou até mais de duas. Contudo, Elisabeth bebe o sangue de Alma para compor personagens além de si mesma, sugado os comportamentos, reações e inocências. E ante a todos os debates que Persona gera, dada a sua quantidade de símbolos e interpretações, a de uma atriz que leva seu ofício ao limite é uma das que mais gostei.

Em um momento, Elisabeth Vogler escuta a seguinte explicação para sua mudez: “Entendo por que não fala, por que não se movimenta. Sua apatia tornou-se um papel fantástico. Entendo e admiro você. Acho que deveria representar esse papel até o fim… até que não seja mais interessante. Então, pode esquecer, como esquece seus papéis.”

Procurando um RG

Esses três filmes tem um ponto em comum, que se esconde atrás da busca de um RG. Os personagens, todos fugitivos, não querem saber quem são, mas qual é o limite da própria criação de si mesmos.

Até David, em “Profissão: Repórter”, não suporta a sua realidade, mas dispõe de poucos recursos para mudá-la. A nova identidade é um golpe de sorte supérfluo.

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Bibi Andersson‎ e ‎Liv Ullmann

Como é destacado em Persona, “a realidade é diabólica. Seu esconderijo não é à prova d’água. A vida engana em todos os aspectos. Você é forçada a reagir. Ninguém pergunta se é real ou não, se é sincera ou mentirosa. Isso só é importante no teatro. Talvez nem nele.”

Quando voltamos a ver as cores e formas do mundo e a reconhecer sua sujeira e degradação como parte da nossa existência, “ser ou não ser” não é mais uma questão: quem sabe, seja um engano.  

Profissão: Repórter

Direção de Michelangelo Antonioni

Disponível no Belas Artes À Lá Carte e HBO GO

Persona

Direção de Ingmar Bergman

Disponível no Telecineplay

Noite De Estreia

Direção de John Cassavetes

Disponível no Youtube, de graça.

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