Esse é o texto mais difícil que me proponho a escrever. O assunto também não ajuda. É complexo, paradoxal. Afinal eu me uso do mesmo formato de mídia que critico: a internet.
Pra alcançar mais pessoas, os critérios de SEO já nos limitam: parágrafos curtos, palavras simples. Os novos redatores digitais já sabem que quanto mais o texto conter termos usuais de busca, melhor ele se posicionará no Google. E aqui já começa o problema: o alcance nos limita. Os textos mais rebuscados têm menor potencialidade de “chegar lá”.
A publicidade nos força a escrever de maneira absurdamente simplória. Não. Não é “simples” a palavra. É simplória mesmo. Porque simples é o que consegue dar conta da complexidade, o simplório foge dela. Afinal temos que escrever de forma que todos entendam. O texto – a informação, a mensagem – virou produto para ser consumido, e não um instrumento de enriquecimento cultural.
Como um alimento industrializado, para ter sucesso precisa ser encaixotado da mesma maneira, produzido em série, todos numa mesma forma, produzido em altas quantidades e baixa qualidade, embalado com design que exclama novidade e exclusividade, mas dentro contém o mesmo produto cheio de açúcar ou glutamato monossódico. Práticos, saborosos ao primeiro contato com a língua, fáceis de mastigar e, por isso mesmo, consumido aos montes.
Estamos fazendo com a informação, o mesmo que a industrialização faz com a gastronomia: entope as veias, satura, vicia, satisfaz por pouco tempo porque não alimenta de verdade, nos leva a altos índices de obesidade e muito pouca saúde.
O redator que tem sucesso nesses termos se orgulha. Quem não se orgulharia de métricas como alcance, tempo na página, cliques no link e conversão? Eu mesmo estou entre eles. E me pego sempre nesse impasse.
Busco entregar conteúdo mastigável e acabo criando uma sociedade incapaz de usar seus próprios dentes.
Assim o ciclo se fecha: conteúdo raso alcança mais, engaja mais, e dá maior autoridade e sucesso a quem produz. Este produtor passará a criar mais conteúdos assim, porque encontrou eco, alcance, engajamento, likes, shares e saves. E assim, nesse ciclo que chamo de “algoritmo da mediocridade”, entregamos alimento medianos para consumidores medianos.
Pouco a pouco, vamos corroendo a língua, a linguagem, a nossa ferramenta mais rica para compreensão e para abarcar a complexidade. Talvez você não saiba, mas quanto mais rica é nossa linguagem, mais rica é nossa percepção da realidade, nossa capacidade de lidar com temas complexos.
Não é à toa que uma linguagem simplista e polar, tem criado uma sociedade simplista e polar.
Nas redes sociais, imagens vivas que exploram nosso cotidiano, exploram nossas vaidades. Legendas curtas, emojis e hashtags. Nesse mar midiático que nos afoga, aquilo que é mais curto, mais direto, acaba alcançando mais. O volume finalmente ganha da qualidade. Porque precisamos nos mostrar todos os dias, falar todos os dias, postar todos os dias, do contrário as pessoas rapidamente nos esquecem e deixam de nos atribuir “autoridade”.
Uma pseudo autoridade. Porque raramente quem fala muito, tem muito pra falar.
A pressão por produzir conteúdo todo dia, conversar todo dia, responder todo dia, é uma busca incessante. Uma corrida atrás do vento. Nos cansa. Nos sobrecarrega. Temos que dizer coisas relevantes todos os dias. E na humana impossibilidade disso acontecer, acabamos fazendo o lógico: destrinchamos em pílulas, separamos em cápsulas, para que uma essa refeição completa a gente possa entregar em colheres, com a carne já cortadinha, com tempero artificial e corantes, com “fumacinha”, para alimentar nossos seguidores.
Não consigo deixar de pensar na imagem de uma mãe-pássaro que todo dia voa para caçar minhocas e pedaços de frutas, e volta dando tudo mastigadinho no bico de passarinhos berrões, clamantes por mais comida.
Não é à toa que se chama “feed” aquilo que você consome todo dia, desde o primeiro segundo que acorda, até o último minuto antes de dormir.
A gente reclamava que a TV fazia isso com a gente: imbecilizava, nos mantinha preso à tela, consumidores de mídia, de informações irrelevantes embaladas sempre com um ar de novidade, de exclusividade, entretenimento, com a mesma estrutura de copywriting que usa e abusa da escassez, que nos “empodera” somente à medida em que mantém nossos olhos presos na tela – e não nos verdadeiros problemas da sociedade.
Bafafá e tititi. É o que passamos a discutir.
Hoje somos esses que criticamos. Cada um uma mídia. Até aí não tem problema. Se você, enquanto mídia, entrega qualidade (e não volume), a sociedade caminharia rumo ao enriquecimento. Mas não. Nossas métricas são baseadas no volume. Para isso colocamos nosso conteúdo num liquidificador e oferecemos com canudinho. Queremos cada vez mais seguidores dependentes de nosso conteúdo, e cada vez menos gente autônoma, madura e capaz de compreender o mundo a partir de seu próprio olhar.
É tudo muito artificial. Na embalagem vem escrito autêntico, mas até o “autêntico” tem uma fórmula: seja informal, seja, você, poste todo dia, mostre sua cara, mostre sua rotina.
Austin Kleon e seu livro “Mostre Seu Trabalho” é também responsável por esse apelo.
De começo até funciona: as pessoas se engajam e se relacionam contigo. Mas quanto mais você engaja, maior volume de respostas tem que dar, mais conversas tem que ter, e a fórmula do engajamento que antes funcionou, agora transforma o produtor de conteúdo em alguém que responde com emojis e linguagem de função fática: aquela que busca meramente estabelecer o contato, mas não aprofunda.
Como poderia aprofundar?
Com tantos seguidores sedentos pelo conteúdo raso e diário, essa é a única forma possível de estabelecer contato.
E por falar nisso, me lembrei de um post que abordava os “influenciadores digitais” – criados por inteligência artificial – entrando no cenário e atraindo milhões de seguidores. Uma postagem potencialmente interessante, que me fez pensar muito sobre como temos seguidores que interagem conscientemente com robôs. Eu puxei uma conversa no chat com a autora do post, usei poucos parágrafos – nada maçante, posso te garantir – queria saber mais sobre a opinião dela, bater um papo rico. Mas acabei recebendo uma resposta que não respondeu absolutamente nada com quatro palavras e um emoji.
O diálogo no digital é uma mentira confortante que criamos, porque no final das contas “todos falam em perfeito isolamento consigo mesmos e sustentam ao mesmo tempo a ilusão de que todos estão sendo ouvidos”. (Paulo Brabo).
É exatamente esse o tema do livro “Sociedade do cansaço” do filósofo Byung-chul Han. Somos a sociedade do desempenho, carregados do fardo de “sermos nós mesmos” todo o tempo. Temos que nos mostrar toda hora, para manter colorido aquele desgraçado círculo dos Stories.
É um sentimento de liberdade que nos prende a um excesso de trabalho.
Estamos em todo lugar com os celulares nas mãos, fazendo mil coisas ao mesmo tempo, e publicando tudo para não perder a relevância. Mas relevância exige relevo. Relevo exige profundidade e altura. Perdemos, assim, o aprofundamento contemplativo do ser humano. Essa nossa atenção ampla, mas rasa, se assemelha à atenção de um animal selvagem – atento apenas aos sinais externos de predadores para se manter vivo.
Posto logo existo. Será?
Esse é um assunto sem fim. Mas ainda assim acho que nosso dever é dar fim a ele.
Para fechar o texto proponho algumas provocações:
- Como produtores de conteúdo temos realmente a capacidade de publicar conteúdo de relevo (profundidade e altura) todos os dias?
- Se viciamos nosso público a receber nosso conteúdo incessante e diário, não estamos criando uma sociedade viciada, com atenção rasa e incapaz de se concentrar em conteúdos maiores e mais contemplativos?
- Nossa linguagem altamente simplificada para se adequar ao algoritmo de entrega, não estaria entregando sempre uma culinária rica em açúcar e pobre em nutrientes?
- Produtores e consumidores não são ambos responsáveis por essa nova sociedade do cansaço, do raso, do fácil e dos “drops” diários?
Termino por aqui. Vou pegar um café. Tentar olhar pra dentro e encontrar minhas próprias mediocridades.
É só quando enxergamos o problema que podemos nos colocar a resolvê-lo.
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texto maravilhoso. E parabéns a todos que chegaram até o ponto final. Isso é raro também.
Parabéns pelo texto e pela opiniãoque reflete exatamente o que penso, Você deu SHOW!
SENSACIONAL 👏🏻😍
não sou um robô.
Que texto maravilhoso!
Thiago,
Parabéns pelo texto! Ótimas reflexões.
Inclusive, ontem postei algo a respeito, e um amigo me direcionou para cá.
Realmente, não estamos sozinhos contra a obesidade da mediocridade, quantidade e métricas.
Deixo aqui o link do texto caso queira misturar os ingredientes: https://medium.com/@guilhermerramos/textos-que-se-preocupam-apenas-com-seo-oferecem-inspira%C3%A7%C3%A3o-criatividade-e-boa-escrita-31a996bee60d
Valeu pela reflexão.
Abraços,
Belíssima reflexão. Somos medíocres engajados com a mediocridade.
Thiago, a jornalista da minha equipe com mais background de redação impressa, que ainda consegue esconder nas linhas curtas do texto SEO alguma profundidade e poesia, é a que menos “performa” no tráfego. No fundo, são os textos que gosto de postar. Mas sigo estimulando que ela continue escrevendo assim (e otimizo o que dá). Afinal, não dá para achar que um texto recauchutado com 390 quebras vai mudar a vida de um leitor. E acho que temos algum dever de tentar mudar isso (nem que tenhamos que manter o redator que não performa). :o) Excelente texto e reflexão!
Thiago, meus parabéns! Confesso que é bem difícil acompanhar o consumo de informações nos dias atuais. Minha caixa de e-mails está lotada, recebendo cerca 20 e-mails por dia de empresas diferentes. “Qual deles devo abrir?” ou, “Qual é relevante para o meu dia e até mesmo para a minha vida?”. Precisamos ser relevantes antes mesmo de querer buscar conteúdos relevantes. “Unsubscribed” desses e-mails em 3…, 2…, 1…
Super post Thiago. Sou testemunha desse efeito desde 2006, já perdi ótimos updaters por conta disso. Infelizmente, estamos em 2020, mas os mecanismos de consumo de informação e engajamento ainda se baseiam mais em quantidade do que qualidade. Tudo isso devidamente cozinhado pelos mais diversos canais de comunicação e pela velha e boa vaidade humana.
Parabéns pelo texto, Thiago! Conseguiu traduzir exatamente este mundo de pessoas rasas no qual estamos convivendo. Abraço!