Quando “Long Tailed Winter Bird” começa é como se estivéssemos vendo os créditos de abertura de um road movie. Repetindo o refrão – “você sente a minha falta?” – com um riff magnético, Paul McCartney poderia muito bem ter criado uma letra mais extensa. Precisa? O verso mínimo expressa a inquietação de 2020: ficar em casa.
Sem turnês e isolado, a sensação é que ele pergunta isso aos fãs e amigos, já que viu esse “pássaro de cauda longa do inverno” migrar para um lugar muito melhor do que o mundo que a gente vive agora.
A canção abre “McCartney III” (2020), um disco feito totalmente por ele, durante o lockdown. Paul acha alívio do isolamento na própria música. Inclusive, “Find My Way” parece uma conversa com ela onde confessa – “eu estou aberto dia e noite”- pra ser reconfortado: “deixe-me ser seu guia nesses dias de angústia”.
Depois de tantos anos vivendo na estrada, lotando estádios e compondo sem que precise provar mais nada, é inspirador ver um artista desse tamanho disposto a encontrar mais caminhos, mais possibilidades. Essa busca vai além da fama, do dinheiro ou da vaidade. É aquele comichão que poucos de nós tem a sorte de sentir. Alegre pra caramba, “Find My Way” tem uma melodia viciante.
“Petty Boys” baixa o ritmo. Talvez seja uma canção de Paul para os netos, ou um rastro de lembrança de quando ele, George, Ringo e John, saíam por aí. Singela, serve como uma passagem afetiva para “Woman and Wives”. Lindíssima, levada por um piano melancólico, é um conselho de alguém com 78 anos que já viveu e viu muita coisa. A sabedoria da reflexão está na simplicidade mesmo: “Cada caminho que tomamos / Torna mais difícil viajar”.
Paul faz a boa “Lavatory Hill” na mesma fórmula de outras músicas suas. Em algum momento, me lembrou de “Run, devil, run”, mas sem o mesmo peso.
E aí, vem a obra-prima, “Deep deep feeling”. A viagem agora é por dentro dentro de um sentimento que faz o coração explodir. É um labirinto. Mas, Paul parece mais interessado em passar por todos os corredores do que encontrar a saída. É um momento mágico, que atualiza todas as experimentações lisérgicas já testadas por ele.
Paul corta a brisa de “Deep deep feeling” na lata, não que isso seja ruim. É mais um “ok, quero outra coisa agora”. E “Slidin’” é um rock ligado no 220, que sintetiza o disco todo: “eu sei que há outras maneiras de fazer isso, mas isso é o que eu quero fazer”. Ele até pode não ter pensado nas músicas como hits de estádio, mas essa foi feita pra eles.
Em fevereiro, aconteceu o “Beijo Celestial”. O fenômeno ocorre quando Vênus fica muito perto da Lua. E em seguida, veio a quarentena… Provavelmente, Paul pensou nesse contexto ao compor a delicada “The Kiss of Venus”, uma canção de ninar no extremo de Slidin’. Dormir e só acordar quando tudo tiver normal parece irresistível só pra quem não tem um estúdio em casa…
Pra mim, o isolamento social de 2020 aparece de novo em “Seize The Day”. Mais otimista e solar do que em “Appreciate”, uma canção do “New” (2013) que me lembro agora e também fala sobre aproveitar o dia, “Seize The Day” é um ótimo exemplo de como Paul liga melodias diferentes na mesma música. Já “Deep Down” é um soul onde essa costura vai mais fundo. Rasgando a voz e criando uma atmosfera ora meio fúnebre, ora pacificada, é outra composição que botei na lista de favoritas.
Talvez, McCartney I, II e III sejam uma trilogia. Só que é difícil dar essa definição com tanta certeza sendo Paul um artista tão múltiplo. O isolamento liga os três trabalhos, mas a trajetória dele mostra que sua obra é um enorme quebra-cabeça, onde todas as peças formam um novo contexto, criam uma nova sensação ou simplesmente despertam lembranças. É tudo pra agora. A controvérsia também uma matéria-prima. Por isso ele encara a modernidade sem medo, experimenta, sai em turnês, flerta com outros gêneros e estilos! Essa gana pra fazer música, a inquietação para buscar formas diferentes de se expressar mesmo quando tudo parece ruir e inventar milhares de melodias, vai muito além de uma análise se ele tá tocando bateria bem ou não… que outro artista vivo faz isso hoje?
Pra fechar, “Winter Bird / When Winter Comes” retoma o riff de “Long Tailed Winter Bird”. A viagem acabou. O momento é duro, mas a gente vai superar se tiver capacidade pra ver tudo sob outra ótica. Em uma de suas entrevistas, Paul contou sobre a criação da capa. No início, pensou em apenas um 3. Se provocou sobre o que mais podia ser esse três. O dado é simbólico. Ele pode ser sorte, azar ou destino. Depois de 18 discos solos sendo uma das maiores lendas da história e criando um disco da beleza que é McCartney III sozinho no meio de uma pandemia, a gente tem certeza que não é nem sorte, nem azar. Paul é um pássaro que não para de cantar nem no inverno.
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Extremamente raro ler uma crítica tão leve, despretensiosa e certeira. Parabéns pelo texto! E que venha a turnê deste álbum!
Ah, que texto adorável!
Com certeza vou ouvir o álbum com outros olhos.
:)
À propósito, ter assistido, “de corpo presente”, ao show de um Beatle (em 2017) já é tópico do meu curriculum vitae.
Ah, que ótimo que gostou, Kátia! Realmente, assistir o show do Paul é algo pra colocar no CV da vida haha